Neste artigo, o autor sustenta que os países da América Latina
têm logrado contornar alguns dos obstáculos à sua participação no
mecanismo de solução de controvérsias da OMC. Tais esforços estão
relacionados tanto a capacitação como a reformas institucionais e têm
sido verificados de forma heterogênea na região. O autor conclui que os
países latino-americanos não são simples seguidores das tendências no
uso do referido mecanismo.
Uma das principais conquistas da Rodada Uruguai foi garantir que as
decisões do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) fossem de
cumprimento obrigatório para os países membros da Organização Mundial do
Comércio (OMC) e adotadas segundo o princípio do consenso negativo. Na
prática, passou-se de um conjunto de decisões arbitrais ad hoc
no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT,
sigla em inglês) para um espaço normativo funcional, dotado de práticas e
uma jurisprudência coerentes, e que apresenta um volume de decisões sem
paralelo no âmbito do direito internacional. O mecanismo de solução de
controvérsias (MSC) é especialmente importante para os países em
desenvolvimento (PEDs) já que, em um sistema de normas, são os
fundamentos jurídicos que determinam o desfecho de uma disputa, e não a
vontade dos países com maior poder econômico.
A Tabela 1, baseada nas estatísticas da OMC até setembro de 2011,
oferece um panorama da participação dos países da América Latina no MSC,
inclusive como terceira Parte em alguma disputa. Conforme revelam os
dados, todos os países da região atuaram de alguma manera no MSC.
Bolívia, Cuba e Paraguai, porém, participaram apenas como terceira
Parte.
É verdade que os números absolutos não dizem muito sobre a
participação dos membros, quando considerada a sua parcela relativa no
comércio mundial. Espera-se que, quanto maior o intercâmbio com outros
países, maior a probabilidade de um membro encontrar obstáculos às
exportações que devem ser removidas mediante o uso do OSC. A Tabela 2
calcula o índice de utilização do MSC ponderado sobre a base da
participação nas exportações mundiais de bens e serviços. Segundo a
fórmula utilizada, o ponto de equilíbrio é 1, de modo que todo resultado
superior a 1 indica a sobrerrepresentação do país no MSC dado o seu
nivel de comércio. Índices inferiores a 1, por outro lado, correspondem a
países que utilizam o órgão menos do que a sua participação nas
exportações levaria a pensar.
Os resultados levam a conclusões interessantes. Em primeiro lugar, constata-se que Guatemala e Honduras apresentam uma participação no MSC bastante superior à participação nas exportações totais dos membros da OMC. Entre os países da região, a Venezuela é o único que utiliza o MSC menos do que o seu nível de exportações sugeriria. Outro caso interessante é o México, principal exportador da América Latina, que, embora tenha um total de 21 solicitações de consulta, possui um baixo índice de participação no MSC. A principal conclusão geral é que os países da América Latina, seja como demandantes ou demandados, possuem um nível de participação no MSC superior ao esperado dado o peso relativo da região no comércio mundial. Dessa maneira, é pertinente pensar que os membros da OMC na América Latina foram capazes, em grande medida, de contornar os obstáculos à participação dos PEDs no MSC. Tais desafios são analisados a seguir.
Os resultados levam a conclusões interessantes. Em primeiro lugar, constata-se que Guatemala e Honduras apresentam uma participação no MSC bastante superior à participação nas exportações totais dos membros da OMC. Entre os países da região, a Venezuela é o único que utiliza o MSC menos do que o seu nível de exportações sugeriria. Outro caso interessante é o México, principal exportador da América Latina, que, embora tenha um total de 21 solicitações de consulta, possui um baixo índice de participação no MSC. A principal conclusão geral é que os países da América Latina, seja como demandantes ou demandados, possuem um nível de participação no MSC superior ao esperado dado o peso relativo da região no comércio mundial. Dessa maneira, é pertinente pensar que os membros da OMC na América Latina foram capazes, em grande medida, de contornar os obstáculos à participação dos PEDs no MSC. Tais desafios são analisados a seguir.
Obstáculos à participação dos PEDs no MSC
A seguir, busca-se analisar como os países latino-americanos têm
lidado com os obstáculos que restringem a capacidade de os PEDs
recorrerem ao MSC. O artigo escrito por Hunter Nottage, intitulado
“Developing Countries in the WTO Dispute Settlement System”[1]
é particularmente útil para identificar quais são os obstáculos reais
ou percebidos. São seis os obstáculos identificados por Nottage, os
quais são discutidos a seguir.
i) Falta de expertise ou de capacidade para litigar na OMC
A falta de capacidade para litigar na OMC por parte dos PEDs tem sido
aliviada pelo Centro de Assessoria Jurídica em Assuntos da OMC (ACWL,
sigla em inglês). O ACWL foi criado em 2001 para dar apoio jurídico aos
PEDs em suas atividades na OMC, especialmente na solução de
controvérsias. Além de prestar serviços a taxas bastante inferiores
àquelas de escritórios privados, o Centro estabelece um limite para os
custos de assessoria, definido de acordo com a categoria do membro[2]. Para utilizar tais serviços, os PEDs devem ser membros do ACWL, status adquirido mediante o pagamento de uma contribuição única, calculada segundo a participação do país no comércio internacional.
Atualmente, 14 países latino-americanos são membros do ACWL:
Colômbia, Uruguai e Venezuela na categoria B; e Bolívia, Costa Rica, El
Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Peru e
República Dominicana na categoria C. A América Latina é a região com
mais representantes no Centro – o que talvez explique a alta taxa de
participação do MSC.
ii) Identificação e comunicação de barreiras comerciais ao governo
O principal problema consiste em informar o governo sobre a medida
que constitui um obstáculo comercial, de modo a permitir sua avaliação
para determinar se existe ou não violação dos acordos da OMC. Os PDs
possuem mecanismos formais para que os exportadores comuniquem as
autoridades caso se deparem com uma medida imposta por outro país que
restrinja o acesso ao mercado. Os países latino-americanos não
apresentam mecanismos semelhantes; a identificação e a comunicação de
barreiras comerciais ao governo persistem como problemas reais para a
maior parte de países da região.
Contudo, existem mecanismos institucionais informais, como no caso do
Brasil, onde se observa a interação da Câmara de Comércio Exterior
(CAMEX), o Conselho Consultivo do Setor Privado (CONEX) e a
Coordenação-Geral de Contenciosos (CGC) do Ministério das Relações
Exteriores (MRE). A experiência do Brasil indica a importância de canais
de comunicação entre o setor privado e os governos para potencializar a
participação plena no sistema multilateral de comércio – em especial no
MSC.
iii) Temor a pressões políticas ou econômicas por parte dos membros questionados
O medo de represálias, ao que parece, foi superado há algum tempo nos
países da região. Desde as primeiras tentativas, os países
latino-americanos mostraram-se pouco reticentes em desafiar os PDs. Uma
vez mais merece menção a atuação do Brasil que, além de utilizar o MSC
para a defesa de suas exportações, utiliza o mecanismo com o objetivo de
fortalecer suas posições nas negociações.
Exemplo disso é o caso do algodão, em que os subsídios agrícolas dos
Estados Unidos foram questionados. Ao iniciar a disputa, o Brasil não
buscava apenas defender suas vendas de algodão ou de soja no mercado
internacional; seu principal objetivo era questionar os subsídios
agrícolas estadunidenses, um ponto central das negociações da Rodada
Doha. Em sua tentativa de prevalecer no caso do algodão, o Brasil
aumentou de forma significativa o seu peso político na OMC, a ponto de,
atualmente, ser um dos principais atores na Organização, ao lado de
Estados Unidos, União Europeia (UE), China e Índia.
iv) Duração dos procedimentos
A percepção de que a duração dos procedimentos do MSC constitui um
obstáculo depende do ponto de vista adotado: para o demandante, estes
são muito longos, ao passo que, para o demandado, são demasiado curtos
para a preparação de uma boa defesa. De qualquer maneira, os países da
América Latina encontraram soluções criativas para a questão.
A Colômbia, por exemplo, recorreu aos bons ofícios do diretor-geral
no caso da banana. Duas foram as razões alegadas: para os colombianos,
este procedimento poderia solucionar mais rapidamente um assunto que já
vinha sendo discutido há tempos na OMC, além de permitir a obtenção de
uma recomendação concreta para a solução do caso. Todo o processo de
bons ofícios durou pouco mais de dois anos, ou seja, um período similar
ao de um painel (considerada também a apelação). Uma solução negociada
para a controvérsia, entretanto, evitou todo o processo de cumprimento
das recomendações do OSC, o que a tornou muito mais eficiente.
v) Os compromissos que regulam parte do comércio dos PEDs não são exigíveis na OMC
Parte importante do comércio entre PEDs e PDs é realizada por meio de
preferências que não podem ser discutidas no MSC da OMC. Com isso, o
uso do mecanismo por parte dos PEDs sofre uma importante limitação.
Ademais, boa parte do comércio intrarregional na América Latina e de
forma crescente com os Estados Unidos, é feito por meio de acordos
regionais que possuem seus próprios mecanismos de solução de
controvérsias. O MSC só garante o cumprimento das obrigações adquiridas
no marco da OMC, ou seja, contidas nos acordos do sistema multilateral
de comércio e nas listas de concessões de bens e serviços de cada
membro. Estejam cobertas por derrogações ou pela cláusula de habilitação
na OMC, as preferências unilaterais não são compromissos exigíveis no
MSC.
Essa situação explicaria a razão de o México possuir uma baixa
participação relativa no mecanismo da OMC, tendo em vista que grande
parte de suas exportações – cerca de 78% em 2011 – têm os Estados Unidos
como destino. Dado que o Acordo de Livre Comércio da América do Norte
(NAFTA, sigla em inglês) possui um mecanismo de solução de controvérsias
próprio, é possível que a maioria das disputas entre mexicanos e os
Estados Unidos não cheguem ao MSC da OMC[3].
vi) Incapacidade de implementar as recomendações do OSC
Um dos obstáculos que tem recebido maior atenção nos círculos
acadêmicos e nas discussões na OMC é a suposta incapacidade dos PEDs de
garantir o cumprimento das recomendações do OSC, utilizando a
retaliação. Vale a pena lembrar, porém, que o histórico de cumprimento
das recomendações do OSC é muito bom. Desde o estabelecimento da OMC,
houve somente 19 decisões arbitrais – referentes a 9 medidas comerciais
distintas – baseadas no artigo 22.6 do Entendimento sobre Solução de
Controvérsias (ESC) estabelecendo o nível de suspensão de concessões, ao
passo que 17 autorizações do OSC permitiram a adoção de medidas
retaliatórias. Os países da região, inclusive o Caribe anglófono,
envolveram-se em 6 dos 9 casos – se os contabilizamos por medida
violatória – em que a retaliação foi autorizada.
Destes casos, três merecem ser vistos detalhadamente. O primeiro
membro latino-americano que solicitou autorização para a aplicação de
medidas retaliatórias foi o Equador, em sua disputa com a UE pela
banana. Antigua e Barbuda viu-se na mesma situação no caso das apostas
pela Internet, contra os Estados Unidos. Finalmente, o Brasil também
solicitou a aplicação de medidas retaliatórias no caso do algodão contra
os Estados Unidos. Os três casos possuem algo em comum: constituem
medidas de alta sensibilidade política, por envolverem interesses de
atores influentes nos países envolvidos. Dessa maneira, a falta de
cumprimento das recomendações do OSC não decorre tanto do perfil dos
participantes da disputa, mas sim de seu resultado. Em todos os exemplos
apresentados, a efetividade da retaliação não influiu na decisão do
membro derrotado de cumprir ou não com as recomendações.
Em resumo, a impossibilidade de garantir o cumprimento das
recomendações da OMC é um impedimento que não tem sido observada na
prática, devido ao alto nível de cumprimento até o momento das decisões
do MSC. No entanto, as razões teóricas para tais impedimentos são
sólidas, e existe uma distância pequena entre a teoria e a prática nesse
caso. Por isso, vigilância constante é necessária, a fim de enfraquecer
o peso teórico dos argumentos que justificariam tal impossibilidade[4].
Considerações finais
Conforme apontado pela análise estatística, a participação dos países
latino-americanos no MSC tem sido não apenas superior àquela
apresentada pelos demais PEDs, como também mais significativa que o seu
peso relativo no comércio internacional. Os países da região foram
capazes de encontrar formas de superar obstáculos e impedimentos que, em
geral, prejudicam a participação dos PEDs no MSC. O Brasil, em
especial, tem utilizado o mecanismo de modo a fortalecer as suas
preferências nas negociações. Tal estratégia tem exigido um esforço
importante em matéria de capacitação e reforma institucional. Para
maximizar os benefícios da participação no MSC, é necessário desenvolver
mecanismos internos que permitam ao setor privado comunicar ao governo
as barreiras comerciais encontradas para que seja avaliada a
conveniência de uma disputa na OMC.
Ademais, é preciso atentar para os fluxos de exportação em direção
aos parceiros comerciais do mundo desenvolvido, especialmente quando há
preferências envolvidas. O ideal seria que as tarifas consolidadas
segundo o princípio da Nação Mais Favorecida (NMF) se aproximassem cada
vez mais das preferências, eliminando-as – o que traria maior
previsibilidade ao intercâmbio comercial com os PDs. Por outro lado, tal
iniciativa nivelaria a competitividade dos PEDs com países
anteriormente excluídos das preferências.
A principal conclusão do presente artigo é que os países
latino-americanos não são simples seguidores das tendências no uso do
MSC. Pelo contrário, encontram soluções inovadoras e formulam argumentos
criativos, respeitando os parâmetros estabelecidos pelas normas da OMC.
Com isso, a América Latina utiliza plenamente as ferramentas oferecidas
pelo sistema multilateral de comércio para defender seus mercados de
exportação, fundamentais para a promoção do crescimento econômico.
Raúl Torres Troconis -Conselheiro na Divisão de Desenvolvimento da Secretaria da OMC. Mestre pela Universidade de Georgetown.
[1] O artigo em questão pode ser acessado na seguinte página: http://www.globaleconomicgovernance.org/wp-content/uploads/nottage-working-paper-final1.pdf.
[2]
Na prática, o total cobrado por um serviço se limita a 276.696 francos
suíços para membros da categoria A, 207.522 francos suíços para a
categoria B e 138.348 para a categoria C.
[3] Ainda assim, 10 das 21 consultas solicitadas pelo México segundo o MSC da OMC foram contra os Estados Unidos.
[4] Hunter Nottage conclui de forma semelhante a sua análise do tema.
Fonte: ICTSD
Concordo com os argumentos do texto. Esse debate me lembrou muito o artigo "Carving Out Policy Autonomy for Developing Countries in the World Trade Organization", apresentado pelo Alvaro Santos (Georgetown University) no Cebrap em 2011, no qual o autor demonstra, através de um estudo de caso sobre o Brasil e o México, que enquanto existem importantes limites impostos pela arquitetura da OMC e pela assimetria de poder entre seus membros, há flexibilidade dentro do sistema para expandir a autonomia regulatória dos países em desenvolvimento para além do que é reconhecido. O que diferencia o Brasil é justamente sua habilidade em utilizar ferramentas legais e jurídicas para modificar interpretações de regras de comércio internacional e proteger seus interesses econômicos.
ResponderExcluirO Alvaro Santos é um jurista promissor desta linha empírica de "direito e desenvolvimento". Vale a pena conferir o artigo, que foi publicado em 2012 pela Virginia Journal of International Law e disponível aqui: http://scholarship.law.georgetown.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1897&context=facpub