terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Cooperação internacional facilitará a cobrança de pensão no exterior

Pais que fogem do Brasil para não pagar pensão alimentícia poderão ser localizados e obrigados a quitar os valores mais rapidamente. Além disso, poderão ter passaporte retido e carteiras de motorista suspensas no exterior. Um decreto presidencial, publicado no fim do ano passado, facilitará a cobrança a partir da cooper internacional entre o Brasil e outros 37 países.
Mais de 200 pedidos para pagamento internacional de pensão alimentícia foram feitos ao Ministério da Jus desde a promulgação da norma.
Casos em que um dos pais deixa o Brasil para não quitar a pensão não são raros, segundo Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). "A fuga é muito comum, assim como a dificuldade em localizá-los", afirma. Com a Convenção, essa realidade deve melhorar com cobranças mais rápidas e baratas, segundo a advogada Anna Maria Godke, sócia do Godke Silva & Rocha Advogados.
Por esse e outros aspectos que o Decreto nº 9.176 é comemorado por especialistas. A norma reconhece a participação do Brasil na Convenção sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, de 2007. "Era quase impossível receber pensão de devedor de alimentos no exterior. Todos os clientes que tive desistiram", afirma Pereira.
Hoje a maioria das cobranças externas é feita pela mãe direcionado ao pai do menor, de acordo com o Ministério da Justiça. Os países que mais recebem pedidos são Portugal, Estados Unidos e Espanha. Japão, Argentina e Suíça aparecem na lista mas não são signatários do tratado.
A convenção não traz uma mudança significativa nos procedimentos, mas segundo o Ministério da Justiça, oferece mais efetividade. Antes, de forma geral, a sentença brasileira que determinava o pagamento da pens era encaminhada para o país estrangeiro e, muitas vezes, não era aceita para a execução (cobrança). Agora h critérios para a decisão brasileira ser recusada. Se cumpridos, deve ser aceita.
Esse era considerado o maior gargalo pelo Ministério da Justiça. Os Estados Unidos, por exemplo, não aceitavam pedidos de reconhecimento e execução de sentenças brasileiras. "Só executariam sentença brasile se a pessoa entrasse com ação lá. Por meio de cooperação jurídica internacional não aceitavam", afirma o diretor-adjunto do Departamento de Recuperação de ativos e Cooperação jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça, Tácio Muzzi.
Antes do decreto, já era possível aos interessados requerer a localização do devedor ou de bens. Porém, mui países negavam, sob o argumento de invasão de privacidade. Demandas com indicação errada de endereço, exemplo, costumavam ser devolvidas sem o cumprimento ou a tentativa de localização, de acordo com o Ministério da Justiça.
A Convenção estabelece um sistema de cooperação internacional para o envio e a tramitação judicial dos pedidos de reconhecimento e execução das pensões entre os 37 países signatários. Cada um deles deverá cri uma autoridade central encarregada de cumprir as obrigações.
Essas autoridades concentram os pedidos, tentam localizar devedores e credores, obter informações sobre renda e localização de ativos e ainda estimular soluções amigáveis, como mediação ou conciliação para obte pagamento voluntário de alimentos. No Brasil, essa função fica a cargo do DRCI.
Uma novidade é que algumas medidas, fixadas por sentença brasileira, poderão ser executadas no exterior p autoridade local como a retenção de passaporte e suspensão de carteira de motorista, como forma de forçar pagamento. A prisão por dívida alimentar, como ocorre no Brasil, só será feita se o país possuir lei nesse sentido.
As demandas de alimentos representam quase 40% do total dos pedidos de cooperação internacional em matéria civil que são a atribuição do DRCI. Mais de 90%são pedidos ativos ou seja quando o devedor está diretor-adjunto do Ministério da Justiça. "Um alimentando no Brasil tinha muita dificuldade em citar o responsável no exterior e executar. Ganhava mas não levava", diz Muzzi.
Uma plataforma eletrônica está em desenvolvimento para o cadastro e tramitação dos pedidos de forma ma rápida. Atualmente, boa parte dos requerimentos ainda é enviada em papel. "A inexistência da plataforma eletrônica não impede nada, mas tornaria mais rápido. Esperamos que esteja pronta em breve", diz Tácio Muzzi.
Como a mudança de país para evitar o pagamento de pensão alimentícia não é uma exclusividade de família mais ricas, o Ministério da Justiça diz que para facilitar pedidos, a cobrança de custas processuais deixou de existir.

Fonte: Valor

Por que decidimos intervir em um caso na Suprema Corte dos EUA?

Dentre os casos que serão julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos este ano está o United States v. Microsoft Corporation, que discute, basicamente, se o governo estadunidense pode, mediante ordem emanada por um juiz nos Estados Unidos, obter o conteúdo de comunicações armazenadas em servidores localizados fora do país. Muito além de definir o alcance que ordens de juízes estadunidenses podem ter sobre os dados controlados pelas empresas de Internet sediadas lá, o caso traz repercussões sérias para as discussões sobre jurisdição e acesso a dados de usuários de internet no resto do mundo.
Para contribuir com o debate que será travado na Suprema Corte, o InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, protocolou ontem peça de amicus curiae, levando à apreciação da Corte a experiência brasileira com o tema e o impacto que a decisão pode causar globalmente, a depender da forma como o caso for solucionado.
Entenda o caso
No âmbito de uma investigação de tráfico de drogas, autoridades estadunidenses obtiveram uma ordem judicial determinando que a Microsoft quebrasse o sigilo de e-mails que estão armazenados em servidores da empresa localizados na Irlanda. Em vez de entregar o conteúdo dos emails requeridos, a Microsoft decidiu questionar a legalidade da ordem. Tendo sido vencida no District Court for the Southern District of New York, a empresa recorreu à Court of Appeals for the Second Circuit, que reverteu a decisão anterior, dando ganho de causa à Microsoft.
O governo estadunidense recorreu então à Suprema Corte, que admitiu o caso para julgamento em outubro de 2017. A principal questão em disputa é se a ordem do juiz estadunidense para a entrega de conteúdo de comunicações armazenadas fora dos Estados Unidos poderia ser considerada “extraterritorial”. Se sim, ela seria ilegal.
O governo dos Estados Unidos nega que o caso implique qualquer exercício extraterritorial de poder. Como a Microsoft poderia acessar as informações dos Estados Unidos, país onde serão entregues a autoridades de investigação, o governo argumenta que é irrelevante o fato de que os dados estejam armazenados no exterior.
A Microsoft, por sua vez, defende que a legislação americana em questão (o Stored Communications Act) nunca pretendeu conferir aos juízes poderes que iriam para além das fronteiras dos Estados Unidos. Como a empresa está sendo obrigada a realizar a apreensão dedados na Irlanda tal como se agente do Estado fosse, haveria, sim, exercício de poder extraterritorial, o que tornaria essa ordem de quebra de sigilo ilegal. Para que o governo estadunidense obtenha acesso às informações requeridas, a Microsoft defende que seria preciso seguir os procedimentos previstos no acordo de cooperação mútua (MLAT) em matéria penal celebrado com a Irlanda.
Repercussões no Brasil
Para além das questões de interpretação da legislação americana, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos definirá os limites de alcance do governo estadunidense sobre comunicações realizadas a partir de serviços oferecidos por empresas de Internet sediadas naquele país. Isso significa dizer que uma decisão favorável ao governo estadunidense daria a ele poderes para requisitar a essas empresas dados sobre comunicações de quaisquer cidadãos, independentemente do local onde estejam armazenadas ou do país onde tenham ocorrido. Isso ampliaria significativamente as prerrogativas de acesso a comunicações por parte do governo estadunidense, o que poderia ocorrer a despeito de essas informações estarem protegidas por legislações nacionais de outros países, que podem conter garantias e mecanismos próprios de acesso a esses mesmos dados. Isso incluiria dados dos mais de 100 milhões de brasileiros usuários de grandes plataformas de internet sediadas nos Estados Unidos.
Além disso, a decisão pode representar um precedente alarmante na medida em que reconheceria o poder de um governo (no caso o dos Estados Unidos) de acessar informações de cidadãos independentemente de elas também estarem sob a jurisdição de outros países, cujas legislações podem estabelecer graus diferentes de proteção à privacidade e devido processo legal. Na prática, se favorável ao governo estadunidense, a decisão seria um forte argumento para que autoridades de investigação de outros países demandem o mesmo tipo de prerrogativa, instaurando uma dinâmica de acesso a comunicações de usuários que passa por cima dos acordos de cooperação internacional existentes, pensados justamente para equalizar esses tipos de conflitos de jurisdição.
Nesse contexto, vale lembrar os notórios confrontos entre autoridades de investigação brasileiras e empresas estadunidenses. No âmbito de investigações criminais no Brasil, é comum que autoridades brasileiras obtenham ordens de quebra de sigilo de comunicações eletrônicas, mas se deparem com dificuldades no cumprimento dessas ordens por parte de empresas estadunidenses. A principal razão apontada é que os dados buscados estão fora do território brasileiro, controlados pelas empresas-matrizes, as quais estão proibidas pela legislação americana (o mesmo Stored Communications Act) de entregar essas informações a governos estrangeiros fora dos procedimentos diplomáticos usuais, os MLATs.
Conflitos desse tipo já levaram a prisões de executivos e até mesmo bloqueios de aplicativos (antes mesmo que “criptografia de ponta a ponta” fosse uma barreira técnica!) e continuam gerando multas milionárias impostas a empresas subsidiárias sediadas no Brasil. Em dezembro do ano passado, a questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 51.
Nela, a ASSESPRO (Federação das Associações de Empresas de Tecnologia da Informação) pede que seja assentada a constitucionalidade de diversos mecanismos de cooperação internacional para obtenção de conteúdo de comunicações. Apesar de o Marco Civil estender a jurisdição brasileira para dados armazenados, gerados e processados no Brasil e a quaisquer empresas que oferecem serviços no país, tais dados e empresas também estão, muitas vezes, submetidas à legislação estadunidense, que, como dito, proíbe a entrega de conteúdo de comunicações a autoridades estrangeiras fora dos procedimentos estabelecidos nos MLATs.
A discussão que o Supremo Tribunal Federal terá que enfrentar não é simples: passa, também, por reconhecer as demandas das autoridades de investigação, que alegam ter seu trabalho obstruído pela ineficiência e morosidade desses acordos de cooperação. Nesse sentido, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos certamente influenciará a argumentação de nossos ministros.
O amicus do InternetLab: principais argumentos
Partindo dos resultados de pesquisa da área “Privacidade e Vigilância”, a intervenção do InternetLab no processo busca engrossar as vozes que veem na prerrogativa invocada pelo governo estadunidense uma medida extraterritorial que colocará em xeque a utilização dos mecanismos de cooperação internacional para a produção de provas no contexto digital, o que acirra os conflitos de jurisdição e passa por cima das garantias à privacidade embutidas nesses mecanismos. Nesse sentido, nossa intervenção defende três ideias principais:
Primeiro, que uma ordem de quebra de sigilo de um juiz estadunidense tem aplicação e efeitos extraterritoriais sempre que as comunicações buscadas estão localizadas em um país com o qual os Estados Unidos têm um acordo de cooperação mútua. Nesses casos, os países em questão decidiram, no exercício de suas soberanias, que o mecanismo apropriado de acesso a evidências que implique os dois países é a via diplomática: assim se garante o devido processo legal. No Brasil, esse procedimento está consubstanciado no Decreto n. 3.810/2001.
Segundo, que uma ordem de quebra de sigilo de um juiz estadunidense tem aplicação e efeitos extraterritoriais sempre que as comunicações buscadas estão submetidas, simultaneamente, à jurisdição de países que estabelecem regras conflitantes sobre o acesso a essas informações. No caso de dados gerados no Brasil, ao mesmo tempo em que o Marco Civil da Internet, em seu artigo 11, determina a aplicação da legislação brasileira a todas as informações coletadas, processadas ou armazenadas em território nacional, o que incluiria, em tese, a entrega dessas informações às autoridades de investigação mediante ordem judicial, o Stored Communications Act, legislação à qual as empresas estadunidenses que atuam no país também estão submetidas, proíbe a entrega de conteúdo de comunicações a autoridades estrangeiras. Nesse caso, a dupla jurisdição sobre esses dados não pode ser ignorada por juízes dos países envolvidos.
Terceiro, que as questões envolvidas no caso devem ser encaradas como escolhas de política pública e, portanto, tomadas por outras instâncias. Os Poderes Legislativo e Executivo devem atuar para aperfeiçoar os acordos de cooperação de assistência judiciária internacional, tornando-os mais eficientes, e avançar discussões sobre modelos alternativos de cooperação, de forma a garantir a preservação de interesses de estados soberanos e de suas autoridades de investigação, mas também do direito à privacidade, e do devido processo legal nos casos que envolvem acesso a dados de usuários de internet.
peça completa, que foi elaborada em colaboração pro bono com o escritório Boies Schiller Flexner LLP, já está disponível na página da Suprema Corte dos Estados Unidos. Destacamos o fato de que a sua elaboração não envolveu nenhum tipo de contrapartida por parte da Microsoft ao InternetLab.
O futuro
A Suprema Corte dos Estados Unidos deve decidir o caso até setembro deste ano. Com o fim do prazo para a apresentação de amici curiae ontem, dia 18 de janeiro, encerram-se as oportunidades de intervenção no processo. Enquanto isso, no Brasil, aguardamos o trâmite da ADC n. 51, que, até o momento, conta apenas com uma peça de amicus curiae elaborada pelo Facebook Brasil.
Equacionar uma questão como essa é uma tarefa que ultrapassa os limites da técnica jurídica. É uma decisão de política pública e que envolve os interesses de diferentes setores e segmentos da sociedade. Por essa razão, comprometido com o debate informado sobre o tema, o InternetLabtem promovido discussões e produzido pesquisa sobre acesso a dados digitais no âmbito do processo penal, mecanismos de cooperação internacional e propostas de reforma. Com isso buscamos entender as dificuldades enfrentadas por autoridades, as obrigações impostas a empresas, e os gargalos do atual sistema de cooperação internacional, de forma a atuar para que as dificuldades sejam mitigadas, as obrigações conflitantes sejam diminuídas, e os gargalos sejam corrigidos. Tudo isso respeitando-se os princípios do Marco Civil da Internet, que reconhece a escala mundial da rede e protege direitos humanos como a privacidade e a liberdade de expressão.
Nossa atuação na Suprema Corte dos Estados Unidos vai justamente no sentido de instar seus ministros e ministras a levar em consideração todos esses elementos no julgamento.

Dennys Antonialli – Professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e diretor do InternetLab (dennys@internetlab.org.br)
Jacqueline de Souza Abreu – Doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e coordenadora da área de Privacidade e Vigilância do InternetLab (jacqueline@internetlab.org.br)

Fonte: JOTA

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Dois gémeos. Um obtém cidadania; outro não

Pais das crianças decidiram avançar para a justiça e processar o Estado norte-americano

São gémeos mas um conseguiu cidadania norte-americana e outro não. Ethan e Aiden Dvash-Banks estão no centro de uma polémica que envolve acusações de discriminação: os pais são um casal homossexual. Na segunda-feira, o caso avançou para tribunal com um processo contra o Estado norte-americano.
O processo foi aberto em nome de Ethan, o gémeo que não conseguiu a cidadania, por uma associação LGBTQ que luta pelos direitos dos imigrantes, a Immigration Equality. Aos 16 meses, o bebé alega que os filhos de casais homossexuais estão a ser discriminados ao ser-lhes negada a cidadania.
Andrew, cidadão americano, e Elad, israelita, conheceram-se quando estudavam em Israel. Casaram-se no Canadá em 2000, quando o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não era permitido nos Estados Unidos. Em setembro de 2016 foram pais de gémeos depois de ambos terem doado esperma para inseminação de dois óvulos, implantados numa mesma barriga de aluguer.
Meses depois, o casal pediu cidadania norte-americana para ambos os filhos, tendo sido necessário fazer testes de ADN para demonstrar a paternidade de cada uma das crianças. Resultado: Aiden recebeu um passaporte; Ethan não, porque a cidadania lhe foi recusada. A explicação: Aiden é filho biológico de Andrew, cidadão americano: Ethan é filho biológico de Elas, israelita.
Para a Immigration Equality, as crianças filhas de cidadãos norte-americanos que se casam no estrangeiro devem ter direito à cidadania independentemente do local onde nascem ou da nacionalidade de um dos pais.
Este caso já é o segundo apoiado pela organização, que defende que o Departamento de Estado norte-americano "se está a recusar a reconhecer a cidadania a crianças cujos pais são do mesmo sexo". "Esta prática não só é ilegal como é inconstitucional", diz no site oficial.
O segundo caso que merece o apoio da Immigration Equality envolve uma mulher norte-americana e outra italiana que se casaram em Londres, onde cada uma delas deu à luz uma criança. O Estado norte-americano apenas reconheceu a criança que é filha biológica da norte-americana.
O responsável diz que a lei está a ser mal aplicada. "Se uma mãe e um pai forem a um consulado e tiverem um certificado de casamento nunca lhes é perguntado nada acerca da biologia do filho", realçou Aaaron Morris à Associated Press, explicando que aos casais homossexuais essas questões são levantadas.
O Departamento de Estado, sem se referir ao caso em concreto, lembrou as orientações que constam do seu site que dizem que deve haver uma ligação biológica com um cidadão americano para alguém obter cidadania no momento do nascimento.

Fonte: DN

domingo, 14 de janeiro de 2018

Os africanos que propuseram ideias iluministas antes de Locke e Kant

Os ideais mais elevados de Locke, Hume e Kant foram propostos mais de um século antes deles por Zera Yacob, um etíope que viveu numa caverna. O ganês Anton Amo usou noção da filosofia alemã antes de ela ser registrada oficialmente. Autor defende que ambos tenham lugar de destaque em meio aos pensadores iluministas.
Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do Iluminismo.
A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos de romantismo e emoção.
Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no "Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em 1793.
Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17: Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob.
Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante, ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento crítico ("qiné") por quatro anos.
Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola, recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã ortodoxa, majoritária no país.
Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o denunciaram para o rei.
Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio Tekezé.
Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais tarde, em "Walden" (1854).
Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632, Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia racionalista.
Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional.
Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope de 1630 a 1632.

LIVROS
A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667 por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma "Hatäta" de orientação mais prática.
Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba.
O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em inglês.
A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael. Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado pela filosofia arábica e as discussões etíopes.
Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor.
Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra "Meditações Metafísicas" (1641).
Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados.
As "Meditações" de Descartes foram dedicadas "ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris", e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não morre com o corpo e de que Deus existe".
Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?" Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a verdadeira:
"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...) Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua própria fé; mas a verdade é uma só".

Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora perspectivas existencialistas:
"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e da consciência de mim mesmo. Quem me criou?".

IDEIAS AVANÇADAS
No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o judaísmo e as religiões indianas.
Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria, fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que "constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor".
Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses ideais.
Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no casamento".
Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não possuir determinados entendimentos".
E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário, a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo dela".
Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente: como par intelectual do filósofo.
Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que "possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim, ele propõe um argumento universal contra a discriminação:
"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos ensina que esse tipo de discriminação não pode existir".
As palavras "todos os homens são iguais" foram escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter empunhado sua pena.
E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio negreiro transatlântico.
Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao Iluminismo.

Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do Iluminismo.

A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos de romantismo e emoção.

Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no "Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em 1793.

Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17: Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob.

Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante, ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento crítico ("qiné") por quatro anos.

Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola, recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã ortodoxa, majoritária no país.

Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o denunciaram para o rei.

Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio Tekezé.

Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais tarde, em "Walden" (1854).

Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632, Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia racionalista.

Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional.

Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope de 1630 a 1632.

LIVROS

A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667 por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma "Hatäta" de orientação mais prática.

Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba.

O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em inglês.

A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael. Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado pela filosofia arábica e as discussões etíopes.

Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor.

Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra "Meditações Metafísicas" (1641).

Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados.

As "Meditações" de Descartes foram dedicadas "ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris", e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não morre com o corpo e de que Deus existe".

Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?" Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a verdadeira:

"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...) Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua própria fé; mas a verdade é uma só".

Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora perspectivas existencialistas:

"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e da consciência de mim mesmo. Quem me criou?".

IDEIAS AVANÇADAS

No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o judaísmo e as religiões indianas.

Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria, fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que "constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor".

Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses ideais.

Fabio Zimbres   

Ilustração de capa da Ilustríssima, por Fabio Zimbres
Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no casamento".

Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não possuir determinados entendimentos".

E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário, a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo dela".

Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente: como par intelectual do filósofo.

Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que "possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim, ele propõe um argumento universal contra a discriminação:

"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos ensina que esse tipo de discriminação não pode existir".

As palavras "todos os homens são iguais" foram escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter empunhado sua pena.

E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio negreiro transatlântico.

Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao Iluminismo.

ANTON AMO
Alguns meses depois de ler a obra de Yacob, enfim tive acesso a outro livro raro: uma tradução dos escritos reunidos do filósofo Anton Amo (c. 1703-55), que nasceu e morreu em Gana.
Amo estudou e lecionou por duas décadas nas maiores universidades da Alemanha (como Halle e Jena), escrevendo em latim. Hoje, segundo o World Library Catalogue, só um punhado de exemplares de seu "Antonius Guilielmus Amo Afer of Axim in Ghana" está disponível em bibliotecas mundo afora.
O ganês nasceu um século após Yacob. Consta que ele foi sequestrado do povo akan e da cidade litorânea de Axim quando era pequeno, possivelmente para ser vendido como escravo, sendo levado a Amsterdã, para a corte do duque Anton Ulrich de Braunschweig-Wolfenbüttel —visitada com frequência pelo polímata G. W. Leibniz (1646-1716).
Batizado em 1707, Amo recebeu educação de alto nível, aprendendo hebraico, grego, latim, francês e alemão —e provavelmente sabia algo de sua língua materna, o nzema.
Tornou-se figura respeitada nos círculos acadêmicos. No livro de Carl Günther Ludovici sobre o iluminista Christian Wolff (1679-1754) —seguidor de Leibniz e fundador de várias disciplinas acadêmicas na Alemanha—, Amo é descrito como um dos wolffianos mais proeminentes.
No prefácio a "Sobre a Impassividade da Mente Humana" (1734), de Amo, o reitor da Universidade de Wittenberg, Johannes Gottfried Kraus, saúda o vasto conhecimento do autor, situa sua contribuição ao iluminismo alemão em um contexto histórico e sublinha o legado africano da Renascença europeia:
"Quando os mouros vindos da África atravessaram a Espanha, trouxeram com eles o conhecimento dos pensadores da Antiguidade e deram muita assistência ao desenvolvimento das letras que pouco a pouco emergiam das trevas".
O fato de essas palavras terem saído do coração da Alemanha na primavera de 1733 ajuda a lembrar que Amo não foi o único africano a alcançar o sucesso na Europa do século 18.
Na mesma época, Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), também sequestrado e levado da África subsaariana, tornava-se general do czar Pedro, o Grande, da Rússia. O bisneto de Gannibal se tornaria o poeta nacional da Rússia, Alexander Pushkin. E o escritor francês Alexandre Dumas (1802-70) foi neto de uma africana escravizada e filho de um general aristocrata negro nascido no Haiti.
Amo tampouco foi o único a levar diversidade e cosmopolitismo a Halle nas décadas de 1720 e 1730. Vários alunos judeus de grande talento estudaram na universidade. O professor árabe Salomon Negri, de Damasco, e o indiano Soltan Gün Achmet, de Ahmedabad, também passaram por lá.

CONTRA A ESCRAVIDÃO
Em sua tese, Amo escreveu explicitamente que havia outras teologias além da cristã, incluindo entre elas a dos turcos e a dos "pagãos".
Ele discutiu essas questões na dissertação "Os Direitos dos Mouros na Europa", em 1729. O trabalho não pode ser encontrado hoje, mas, no jornal semanal de Halle de novembro de 1729, há um artigo curto sobre o debate público de Amo. Segundo esse texto, o ganês apresentou argumentos contra a escravidão, aludindo ao direito romano, à tradição e à razão.
Será que Amo promoveu a primeira disputa legal da Europa contra a escravidão? Podemos pelo menos enxergar um argumento iluminista em favor do sufrágio universal, como o que Yacob propusera cem anos antes. Mas essas visões não discriminatórias parecem ter passado despercebidas dos pensadores principais do iluminismo no século 18.
David Hume (1711-76), por exemplo, escreveu: "Tendo a suspeitar que os negros, e todas as outras espécies de homem em geral (pois existem quatro ou cinco tipos diferentes), sejam naturalmente inferiores aos brancos". E acrescentou: "Nunca houve nação civilizada de qualquer outra compleição senão a branca, nem indivíduo eminente em ação ou especulação".
Kant levou adiante o argumento de Hume e enfatizou que a diferença fundamental entre negros e brancos "parece ser tão grande em capacidade mental quanto na cor", antes de concluir, no texto do curso de geografia física: "A humanidade alcançou sua maior perfeição na raça dos brancos".
Na França, o mais célebre pensador iluminista, Voltaire (1694-1778), não só descreveu os judeus em termos antissemitas, como quando escreveu que "todos eles nascem com fanatismo desvairado em seus corações"; em seu ensaio sobre a história universal (1756), ele afirmou que, se a inteligência dos africanos "não é de outra espécie que a nossa, é muito inferior".
Como Locke, Voltaire investiu dinheiro no comércio de escravos.

CORPO E MENTE
A filosofia de Amo é mais teórica que a de Yacob, mas as duas compartilham uma visão iluminista da razão, tratando todos os humanos como iguais.
Seu trabalho é profundamente engajado com as questões da época, como se vê em seu livro mais conhecido, "Sobre a Impassividade da Mente Humana", construído com um método de dedução lógica utilizando argumentos rígidos, aparentemente seguindo a linha de sua dissertação jurídica anterior. Aqui ele trata do dualismo cartesiano, a ideia de que existe uma diferença absoluta de substância entre a mente e o corpo.
Em alguns momentos Amo parece se opor a Descartes, como observa o filósofo contemporâneo Kwasi Wiredu. Ele argumenta que Amo se opôs ao dualismo cartesiano entre mente e corpo, favorecendo, em vez disso, a metafísica dos akan e o idioma nzema de sua primeira infância, segundo os quais sentimos a dor com nossa carne ("honem"), e não com a mente ("adwene").
Ao mesmo tempo, Amo diz que vai tanto defender quanto atacar a visão de Descartes de que a alma (a mente) é capaz de agir e sofrer junto com o corpo. Ele escreve: "Em resposta a essas palavras, pedimos cautela e discordamos: admitimos que a mente atua junto com o corpo graças à mediação de uma união natural. Mas negamos que ela sofra junto com o corpo".
Amo argumenta que as afirmações de Descartes sobre essas questões contrariam a visão do próprio filósofo francês. Ele conclui sua tese dizendo que devemos evitar confundir as coisas que fazem parte do corpo e da mente. Pois aquilo que opera na mente deve ser atribuído apenas à mente.
Talvez a verdade seja o que o filósofo Justin E. H. Smith, da Universidade de Paris, aponta em "Nature, Human Nature and Human Difference" (natureza, natureza humana e diferença humana, 2015): "Longe de rejeitar o dualismo cartesiano, pelo contrário, Amo propõe uma versão radicalizada dele".
Mas será possível que tanto Wiredu quanto Smith tenham razão? Por exemplo, será que a filosofia akan tradicional e a língua nzema continham uma distinção cartesiana entre corpo e mente mais precisa que a de Descartes, um modo de pensar que Amo então levou para a filosofia europeia?
Talvez seja cedo demais para sabermos, já que uma edição crítica das obras de Amo ainda aguarda ser publicada, possivelmente pela Oxford University Press.

COISA EM SI
No trabalho mais profundo de Amo, "Treatise on the Art of Philosophising Soberly and Accurately" (tratado sobre a arte de filosofar com sobriedade e precisão, 1738), ele parece antecipar Kant. O livro trata das intenções de nossa mente e das ações humanas como sendo naturais, racionais ou de acordo com uma norma.
No primeiro capítulo, escrevendo em latim, Amo argumenta que "tudo é passível de ser conhecido como objeto em si mesmo, ou como uma sensação, ou como uma operação da mente".
Ele desenvolve em seguida, dizendo que "a cognição ocorre com a coisa em si" e afirmando: "O aprendizado real é a cognição das coisas em si. E assim tem sua base na certeza da coisa conhecida".
Seu texto original diz "omne cognoscibile aut res ipsa", usando a noção latina "res ipsa" como "coisa em si".
Hoje Kant é conhecido por seu conceito da "coisa em si" ("das Ding an sich") em "Crítica da Razão Pura" (1787) —e seu argumento de que não podemos conhecer a coisa além de nossa representação mental dela.
Mas é fato sabido que essa não foi a primeira utilização do termo na filosofia iluminista. Como diz o dicionário Merriam-Webster no verbete "coisa em si": "Primeira utilização conhecida: 1739". Mesmo assim, isso foi dois anos depois de Amo ter entregue seu trabalho principal em Wittenberg, em 1737.
À luz dos exemplos desses dois filósofos iluministas, Zera Yacob e Anton Amo, talvez seja preciso repensarmos a Idade da Razão nas disciplinas da filosofia e da história das ideias.
Na disciplina da história, novos estudos comprovaram que a revolução mais bem-sucedida a ter nascido das ideias de liberdade, igualdade e fraternidade se deu no Haiti, não na França. A Revolução Haitiana (1791-1804) e as ideias de Toussaint L'Ouverture (1743""1803) abriram o caminho para a independência do país, sua nova Constituição e a abolição da escravidão.
Em "Les Vengeurs du Nouveau Monde" (os vingadores do novo mundo, 2004), Laurent Dubois conclui que os acontecimentos no Haiti foram "a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, eram de fato universais".
Nessa linha, podemos indagar se Yacob e Amo algum dia serão elevados à posição que merecem entre os filósofos da Era das Luzes.

Fonte: UOL

sábado, 13 de janeiro de 2018

Islândia cria lei de igualdade salarial entre homem e mulher

A Islândia se tornou nesta segunda-feira (1) o primeiro país do mundo a colocar em vigor uma lei que legaliza a igualdade de salário entre homens e mulheres. 
Com a nova lei, as empresas privadas e agências governamentais – que tenham mais de 25 funcionários – serão obrigadas a obter uma certificação especial do governo sobre as políticas de igualdade de remuneração. Caso contrário, elas poderão ser multadas.   
“Os direitos iguais são os direitos humanos. O fosso salarial de gênero é, infelizmente, um fato no mercado de trabalho islandês e é hora de tomar medidas radicais, temos o conhecimento e os processos para eliminá-lo”, afirmou Thorsteinn Viglundsson, ministro da Igualdade e Assuntos Sociais da Islândia.  
Uma das principais razões pela qual a ilha nórdica tem pressionado a implementação da lei, é que quase a metade de seus parlamentares são mulheres. O país pretende eliminar a desigualdade salarial até 2020.   
“Todos os trabalhos que estão sendo feitos e, depois, eles obtêm uma certificação depois de confirmarem o processo caso paguem homens e mulheres igualmente”, explicou Dagny Osk Aradottir Pind, membro do conselho da Associação para os Direitos das Mulheres da Islândia.   
Segundo o último relatório do Fórum Econômico Mundial, a Islândia é o país que mais possui igualdade de gênero, ao lado de Noruega, Suécia e Finlândia. Por outro lado, o Iêmen está em último lugar.(ANSA)
Fonte: Isto é

O 'país' africano que caminha para ser o primeiro do mundo a abolir o dinheiro

Cerca de meia dúzia de homens estão em frente a um casebre em Hargeisa, na Somalilândia, discutindo aos gritos sobre a qualidade do khat - uma planta com propriedades narcóticas e efeitos relacionados aos da cafeína e da cocaína - que acabaram de receber de um vendedor ambulante.
Clientes chegam e partem rapidamente, pegando rapidamente molhos da planta - de consumo legal, diga-se de passagem -, enquanto digitam rapidamente em seus telefones celulares.
"Precisamos fazer tudo rápido aqui, e pagar com dinheiro demora", explica Omar, um dos camelôs que faz ponto na rua (e que fala enquanto masca folhas de khat). "Todo mundo fica calmo se consegue comprar seu khat rápido."
Não há uma cédula ou cartão de crédito à vista, mas isso não quer dizer que a clientela leva a droga de graça. Eles pagaram usando seus celulares, transferindo fundos em uma questão de segundos, no meio de uma rua empoeirada.

Dinheiro em carrinhos de mão
Não há muitas coisas nas quais a Somalilândia pode dizer ser líder neste mundo. Mas pagamentos virtuais parecem ser uma delas.
Autodeclarada independente da Somália desde 1991 - mas ainda sem o reconhecimento da comunidade internacional - ela está no caminho de se transformar no primeiro país do mundo a abolir o dinheiro.
Seja em plena rua ou em um supermercado de Hargeisa, o pagamento via celular está rapidamente se transformando em padrão para os pouco menos de 4 milhões de habitantes.
Essa mudança é parcialmente motivada pela rápida desvalorização da moeda local, o shilling, cuja cotação em relação ao dólar é assustadoramente baixa - são necessários 9 mil shillings para comprar um único dólar.
Além de ter sido devastada por uma guerra civil que ainda não foi totalmente resolvida, a Somalilândia também se complicou com uma política monetária por demais atrelada a interesses políticos, o que resultou em seguidas desvalorizações monetárias desde a criação do shilling, em 1994.
Notas de 500 e mil são as mais comuns, e transações simples podem necessitar uma grande quantidade de cédulas. Um exemplo é o fato de cambistas que trocam dólares e euros por shillings usarem carrinhos de mão para transportar a moeda doméstica pelas ruas.

Créditos em celulares
Sem bancos credenciados internacionalmente, e com um sistema financeiro em que caixas eletrônicos são um conceito distante, duas empresas privadas, a Zaad e a e-Dahab, lançadas nos últimos oito anos, criaram uma economia virtual. Valores são depositados nas contas das companhias e convertidos em créditos para telefones celulares, o que permite transações eletrônicas.
"Para comprar um colar desses, por exemplo, você precisa de um ou dois milhões de shillings", explica Ibrahim Abdulrahman, atendente de uma joalheria, enquanto aponta para o mostruário da loja e ri da ideia de alguém usando papel-moeda para fazer a transação.
"Ninguém pode carregar tanto dinheiro. É muita coisa. Nós nem aceitamos mais shillings, por sinal, só dólares e créditos de celular."
Mesmo em regiões rurais da Somalilândia essa abordagem está ganhando terreno. O país tem alta taxa de analfabetismo, e a simplicidade e funcionalidade da tecnologia alimentam seu avanço. Pagar requer nada mais que digitar alguns números e um código exclusivo de cada vendedor. Eles estão escritos por toda a parte - em barracas de rua ou mesmo lojas mais requintadas.
E, como não é necessário ter acesso à internet, mesmo os celulares mais rudimentares podem ser usados. Consumidores movem dinheiro de uma conta para a outra usando números e códigos em uma operação tão simples como inserir créditos em um celular pré-pago.
"Essa é apenas a receita de hoje", explica Eman Anis, uma ambulante de 50 anos que vende ouro em um mercado de Hargeisa. Ela mostra vendas de cerca de R$ 6,2 mil na tela de seu celular. Há apenas dois anos, os pagamentos que ela recebia pelo celular correspondiam a 5% de seu faturamento. Hoje, passam de 40%.
"É muito mais fácil usar o celular, e a empresa cuida de tudo, incluindo taxa de câmbio. Até os mendigos usam Zaad", diz.

Acessibilidade
Claro que há certo exagero na afirmação acima, mas o sistema de pagamentos realmente trouxe benefícios para as pessoas mais pobres.
No último ano, a Somalilândia foi afetada por uma severa seca que devastou a vida de centenas de milhares de pessoas que dependem da agropecuária. Graças às transferências eletrônicas, elas conseguem receber ajuda financeira de parentes em melhor condição de forma rápida e segura.
Em um país que tem camelos como principal produto de exportação, é surpreendente até empregadores aderindo ao sistema de pagamentos, depositando salários em contas de celulares.
Até porque a difusão dos telefones é larga na Somalilândia. Uma pesquisa de 2016 revelou que 88% dos habitantes com mais de 16 anos possuíam pelo menos um chip de celular. Cerca de 81% dos habitantes de áreas urbanas e 62% das pessoas vivendo em áreas rurais usam as transferências via celular.
Outros países africanos registram o mesmo fenômeno - Gana, Tanzânia e Uganda, por exemplo. E no Quênia, pelo menos metade da população usa o M-Pesa, sistema semelhante ao Zaad.

Desconfianças
Nem todo mundo, porém, vê essa transição com bons olhos.
Há queixas sobre a falta de regulação e suspeitas de corrupção na ascensão da Zaad e da e-Dahab em uma economia frágil e por demais exposta à corrupção e a desastres naturais.
Em outros países, pagamentos via celular usam moeda local, mas na Somalilândia o dólar é adotado, o que aumenta a dependência em relação à moeda dos EUA.
Cambistas como Mustafá Hassan dizem que, além de seus negócios estarem sendo afetados, o sistema de pagamentos é corrupto e causa inflação.
"Esperávamos que o governo regulasse (os pagamentos) ou os proibisse, porque há muitos problemas. Apenas duas companhias controlam o sistema, e parece que elas apenas imprimem dinheiro", diz.
"Isso está causando inflação. Todo mundo que deveria ter dinheiro no bolso agora está usando celulares, até para pagar a passagem do ônibus. E isso é feito em dólares."
O curioso é que o próprio Hassan faz pagamentos pelo celular. Clientes podem enviar dólares eletronicamente e receber shillings em espécie.
"Facilita as coisas, as pessoas podem me mandar dinheiro rapidamente e facilmente", admite.
Mas ele e outros colegas de trabalho ao menos contam com o fato de que nem todos os consumidores estão convencidos de que o sistema moderno é infalível.
"O celular é como carregar um banco no bolso. Você pode ser roubado. Eu sempre uso dinheiro", diz Abdullah, um idoso e raro caso de consumidor que paga em espécie pelo khat.
"Não sei se algum dia vou passar a usar o celular (para pagamentos). É como se me perguntasse quando vou morrer. Quem é que sabe."

Fonte: BBC