quinta-feira, 28 de abril de 2022

Bolívia x Chile e o acesso soberano ao mar: um conto inacabado

 As “velhas questões” da Guerra do Pacífico continuam vivas e insurgindo face a soberania estatal, no que diz respeito à Bolívia e ao Chile. Em 24 de abril de 2013, a Bolívia representou o Chile na Corte Internacional de Justiça, localizada em Haia, no que diz respeito a obrigação do Chile para “negociar” o acesso soberano da Bolívia ao Oceano Pacífico.

Ocorrida entre 1879 e 1883, esta guerra teve suas origens nas desavenças entre estes países que disputavam o controle de uma parte do deserto de Atacama, rica em recursos minerais. Este território era controlado por empresas chilenas com capital britânico e o aumento das taxas sobre a exploração mineral logo se transformou numa disputa comercial, que culminou com uma crise diplomática e a guerra.

As fronteiras entre Chile e Bolívia foram motivo de muitas controvérsias depois da descolonização. Bolivianos e chilenos discordaram quanto à soberania da região, embora já houvesse exploração de companhias chilenas. Em 1866, foi assinado um tratado em os países estabelecendo limites territoriais, seguido de novo tratado em 1874. 

Em 1878, o então presidente boliviano Hilarión Daza decretou um aumento de taxas sobre as companhias chilenas que exploravam o litoral boliviano, retroativo ao ano de 1874. A empresa boliviana Antofagasta Nitrate & Railway Company se recusou a pagar a sobretaxa o governo boliviano ameaçou confiscar todas as suas propriedades. Como consequência, o Chile enviou um navio de guerra para local o que levou a Bolívia a decretar o sequestro dos bens da empresa, anunciando o leilão para o ano seguinte. 

Em 1879, a Bolívia, aliando-se ao Peru, declarou guerra ao Chile. O conflito se estendeu até 1883 culminando com a vitória chilena, que com isso anexou a porção sul do território peruano e a porção da Bolívia que garantia a este último país o acesso ao oceano pacífico. 

A reclamação, feita à Corte Internacional de Justiça, foi suscitada, levando em conta eventuais obrigações que foram subscritas pelo governo chileno em vários processos de negociação. Estas supostas “promessas” que adquiriram as autoridades e o povo boliviano acabaram configurando o “direito de expectativa da Bolívia pelo acesso ao mar”. Seria este direito à expectativa legítimo? 

Nos episódios históricos narrados pelo governo boliviano, figuram as conversações a partir de 1948; as resoluções da OEA, firmadas pelo Chile; as tratativas desdobradas por Augusto Pinochet e Hugo Banzer que foram formalizadas no chamado “Abraço de Charña”, em 1975 e na “Agenda de 13 Puntos”, que foi iniciada durante o mandato de Michelle Bachelet. 

A Corte Internacional de Justiça é o órgão judicial principal das Nações Unidas, previsto na Carta da Nações Unidas, em seu art. 92, fazendo parte da Corte ipso facto todos os membros das Nações Unidas. Foi fundada por Carta das Nações Unidas, em junho de 1945 e iniciou suas atividades em abril de 1946. A sede do Tribunal é no Palácio da Paz, em Haia (Holanda). 

O Tribunal tem um papel duplo: primeiro, resolver, de acordo com o direito internacional, disputas legais que lhe forem submetidos pelos Estados (suas sentenças têm força obrigatória, sem apelo para as partes interessadas); em segundo lugar, para dar pareceres sobre questões jurídicas que lhe seja devidamente autorizadas por órgãos das Nações Unidas e agências do sistema. Também conhecida como “World Court”, é o único tribunal de caráter universal com competência genérica. É um tribunal aberto apenas aos Estados para processos contenciosos, e a certos órgãos e instituições do sistema das Nações Unidas para o processo de consultoria. 

A decisão emanada desta Corte deverá ser cumprida pelo compromisso firmado entre as partes. Caso haja descumprimento de uma obrigação, a outra parte poderá recorrer ao Conselho de Segurança, a qual poderá, se achar necessário, fazer recomendações ou ditar medidas com o objetivo de que se leve a efeito a execução da sentença. 

A ação contra a República do Chile diz respeito a uma disputa em relação à obrigação do Chile de negociar de boa-fé e de forma eficaz com a Bolívia, a fim de chegar a um acordo que conceda à Bolívia um acesso soberano ao oceano. 

De acordo com o art. 38, item 2, do Regulamento da Corte, a solicitação deverá indicar , na medida do possível, os fundamentos de direito em que se baseia o demandante para considerar a competência da Corte. Indicará, ainda, a natureza precisa do demandado e conterá uma exposição suscinta doa fatos e fundamentos em que se baseia a demanda. 

Como base para a jurisdição do Tribunal, a demandante invoca o artigo XXXI, do Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá), de 30 de abril de 1948, no qual ambos os Estados são signatários. 

Este artigo prevê que: “Em conformidade com o artigo 36, parágrafo 2 º, do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, as Altas Partes Contratantes declaram que eles reconhecem, em relação a qualquer outro Estado norte-americano, a jurisdição do Tribunal, ipso obrigatório facto, sem a necessidade de qualquer acordo especial, desde que o presente Tratado está em vigor, em todas as disputas de natureza judicial que surgir entre eles relativos a: 

(a) a interpretação de um tratado; 

(b) qualquer questão de direito internacional; 

(c) a existência de qualquer fato que, se verificado, constituiria a violação de uma obrigação internacional; 

(d) a natureza ou extensão da reparação devida pela ruptura de um compromisso internacional.

Em sua petição, a Bolívia afirma que o objeto da controvérsia reside em três questões principais:

1) a existência de tal obrigação; 

2) o não cumprimento dessa obrigação pelo Chile; 

3) o dever do Chile para cumprir a referida obrigação. 

A Bolívia afirma, nomeadamente, que "além das suas obrigações gerais decorrentes do direito internacional, o Chile comprometeu-se, mais especificamente, através de acordos, a prática diplomática e uma série de declarações atribuíveis a seus representantes do mais alto escalão, para negociar um acesso soberano ao mar. De acordo com a Bolívia, o Chile além de não cumprir com esta obrigação nega a sua existência de sua obrigação.

Centrou-se assim nos pedidos formulados ao Tribunal para que julgue e declare que:

1) O Chile tem a obrigação de negociar com a Bolívia, a fim de chegar a um acordo que concede a Bolívia um acesso totalmente soberano ao Oceano Pacífico;

2) Chile violou a referida obrigação;

3) Chile deve realizar a referida obrigação de boa-fé, prontamente e formalmente, dentro de um prazo razoável e eficaz, para conceder a Bolívia um acesso totalmente soberano ao Oceano Pacífico.

No final de sua exposição, a Bolívia reserva [seu] direito de solicitar que um tribunal arbitral seja estabelecido de acordo com a obrigação prevista no artigo XII, do Tratado de Paz e Amizade, concluído com o Chile em 20 de outubro 1904 e do Protocolo de 16 de Abril 1907, no caso de quaisquer reivindicações decorrentes do referido Tratado.

A questão está centrada na seguinte hipótese: uma expectativa de direito pode atribuir uma obrigação sem violar a soberania de um Estado?

Sabe-se que uma expectativa pode gerar direito quando convola-se em direito subjetivo, passível de ser reivindicado pela via da sindicabilidade judicial.

De acordo com Lachs,[1] é necessário ter presente no espírito o fato de que convém fazer uma diferença entre um direito e uma expectativa. Existe uma tarefa a empreender, da mais alta importância: a de construir um sistema de cooperação em um mundo que muda rapidamente. O direito pode desempenhar papel muito importante, se a vontade política estiver preparada. A ocasião é propícia.

A soberania estatal não é absoluta, reconhece limitações, o direito é marcado ao mesmo tempo por uma necessidade de certeza e necessidade de flexibilidade da regra jurídica[2]… e o fato é que certamente deve ter fim uma pendência que teve início em 1825 e perdura até os dias atuais.

Por: Carina Barbosa Gouvêa

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[1] LACHS, Manfred. O Direito internacional no alvorecer do século XXI. Estud. av., São Paulo, v. 8, n. 21, Aug. 1994. Disponível em: . Acesso em 24 de abril de 2013.

[2] LACHS, Manfred. O Direito internacional no alvorecer do século XXI. Estud. av., São Paulo, v. 8, n. 21, Aug. 1994. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script= sci_arttextπd=S0103-40141994000200007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 24 de abril de 2013.