quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Preferências e protecionismo frente à crise na Europa: desafios ao comércio Brasil-UE


A crise econômica na Europa tem-se agravado nos últimos meses: além do acirramento natural da competição desencadeado pelas políticas econômicas anticíclicas, algumas medidas comerciais vislumbradas por Bruxelas podem afetar o comércio com o Brasil em setores importantes. A reforma do sistema geral de preferências (SGP) europeu e a adoção de exigências ambientais controversas - que podem revelar uma nova tendência de proteção de setores específicos - reforçam a perspectiva de novas feições na relação comercial bilateral a partir do próximo ano. 
No atual contexto de crise, o Brasil precisará empreender esforços para manter e expandir sua presença comercial no mercado europeu. Embora a União Europeia (UE) constitua um dos maiores destinos para as exportações brasileiras, o déficit comercial em relação ao bloco tem aumentado nos últimos anos. Enquanto o intercâmbio cresceu 175% entre 2000 e 2010, a participação do bloco nas exportações brasileiras diminuiu de 27,9% para 21,4%, no mesmo período. Tal volume corresponde a apenas 2% das importações europeias.
Entre elas, destaca-se a anunciada exclusão do Brasil do SGP, que atualmente beneficia exportações brasileiras no valor de € 4 bilhões ao ano. Também, são vislumbradas novas dificuldades para as vendas externas brasileiras na ampliação de exigências para produtos e serviços, fundamentadas em critérios de natureza ambiental. Em contraste com o caráter voluntário do regime de concessões, o segundo grupo de medidas pode ensejar a violação de obrigações decorrentes dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em todos os casos, a ameaça de perdas coloca-se a setores e metas importantes para a política comercial brasileira.
Esse quadro pode ser agravado pela crise de endividamento estatal, uma vez que se espera desaceleração nas taxas de crescimento econômico geral e, com isso, o esfriamento do consumo. Essa característica diferencia o cenário atual daquele verificado em 2008, quando as perspectivas de impacto pela via financeira eram muito maiores. Na conjuntura atual, o comércio torna-se a principal via de contágio, pela retração natural na demanda por importações.
Na fase em que a crise financeira e econômica de 2008-2009 alcançou maior impacto social, o sistema multilateral de comércio foi capaz de refrear os impulsos protecionistas e, assim, a adoção de medidas que afetassem significativamente o grau de abertura dos mercados. No quadro recente, no qual a UE ocupa o epicentro da instabilidade, a tensão comercial volta a escalar, o que reforça as preocupações com certas medidas sinalizadas pelo bloco.
Reforma do SGP europeu
O Brasil é um dos principais beneficiários do regime de preferências comerciais da UE. Contudo, as autoridades europeias já anunciaram a exclusão do país para o próximo ciclo do sistema, compreendido entre 2012 e 2014. O SGP foi criado para auxiliar países em desenvolvimento (PEDs) e países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs), por meio de acesso preferencial ao mercado de países desenvolvidos (PDs). No âmbito da OMC, o sistema funciona como exceção à cláusula da nação mais favorecida, uma vez que implica a concessão de benefícios não estendidos aos demais países membros.
Em função da natureza unilateral das concessões, todos os termos são ditados pelo país concessor, como lista de produtos e países beneficiados, margens de preferência e período de vigência. Os benefícios também podem ser revogados a qualquer momento. Na reforma anunciada recentemente, o valor das importações totais cobertas pelo sistema será reduzido de € 60 bilhões para € 38 bilhões. A proposta apresentada pelo comissário de comércio Karel de Gucht altera os critérios para a definição dos beneficiários, excluindo os países que apresentaram renda alta ou média nos últimos três anos, de acordo com classificação do Banco Mundial. Segundo de Gucht, o propósito de tal medida é concentrar os benefícios nos países mais pobres. O secretário ressaltou a visão europeia de que parte dos países emergentes não necessita mais do auxílio.
A iniciativa reflete um fechamento gradativo dos grandes mercados à concessão de tarifas preferenciais nos últimos anos. Assim como os Estados Unidos da América (EUA), a Europa mostra-se cada vez mais resistente à renovação do SGP. A continuidade do benefício tem sido atrelada, por vezes, a outros interesses de Washington e Bruxelas, como as disputas em torno dos subsídios agrícolas na OMC ou os termos para o acordo de livre comércio entre a UE e o Mercado Comum do Sul (Mercosul).
Embora seja um dos cinco maiores beneficiários do SGP europeu, a dependência do Brasil é menos acentuada em comparação a outros PEDs. Enquanto 50% das exportações da Índia recebem tratamento preferencial, apenas 12% das exportações brasileiras utilizam o benefício, percentual em queda nos últimos anos. O corte nas preferências afetaria mais pesadamente os produtos manufaturados (como químicos, autopeças e automóveis). Dessa forma, a exclusão do SGP pode prejudicar o objetivo brasileiro de diversificar a pauta exportadora, aumentando a participação de produtos de maior valor agregado.
Outro impacto relevante consiste na alteração da concorrência com outros exportadores em função das novas regras de elegibilidade do SGP. Entre os países a serem excluídos, encontram-se África do Sul, Arábia Saudita e Rússia, porém China e Índia devem permanecer entre os beneficiários. Para o Ministério das Relações Exteriores (MRE), os critérios adotados podem favorecer os produtores chineses, cuja competitividade destoa da maioria dos PEDs - e principalmente dos PMDRs. Considerando que maiores fatias do mercado europeu seriam ocupadas por produtos chineses - ainda que esses praticamente não façam uso do sistema -, o propósito de favorecer os países mais pobres seria desvirtuado. Assim, a alteração das condições de concorrência em relação aos demais emergentes constituiria um dos impactos mais significativos da reforma do sistema.
Exigências ambientais: nova tendência
Além da reforma no SGP, as relações comerciais entre Brasil e UE podem ser desgastadas pelo estabelecimento de novas exigências e critérios associados às políticas ambientais do bloco. Apesar de estarem inseridas em instrumentos mais amplos de regulação ambiental e de não serem, a princípio, discriminatórias, as medidas podem afetar dois setores específicos em que o Brasil busca afirmar vantagens competitivas: aviação e biocombustíveis.
A primeira dessas medidas consiste na incorporação do setor de aviação ao Sistema de Comércio de Emissões da UE (EU/ETS, sigla em inglês), mecanismo de cap-and-trade que ocupa o núcleo da política climática do bloco. Aprovada pelo Parlamento Europeu em 8 de julho, a inclusão entrará em vigor no início de 2012. As emissões globais do setor deverão ser reduzidas em 3% em 2012 e 5% ao ano a partir de 2013. Inicialmente, 85% das licenças serão distribuídas gratuitamente e 15% serão leiloadas, parcela que aumentará gradativamente.
A particularidade dessa iniciativa em relação aos demais setores cobertos pelo EU/ETS consiste na equiparação das empresas estrangeiras quanto à obrigação de obter licenças caso excedam o limite determinado de emissões. A medida afetará todos os voos que pousarem na Europa, incluindo os intercontinentais - à exceção de tipos especiais. Na prática, a decisão representa um passo em direção à adoção de medidas de ajuste de carbono na fronteira, questão que, pelo caráter altamente controverso, não chegou à etapa de implementação nos países que a defendem. Assim como a legislação climática dos EUA, ainda congelada na pauta de votação do Senado, a incorporação de medidas de ajuste ao EU/ETS não havia superado as resistências internas e externas. Com a inclusão da aviação, a inquietação dos parceiros comerciais voltou a ganhar força: Brasil, China e EUA já anunciaram que poderão questionar a medida junto ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. A China apresentou oposição mais frontal, com ameaças de retaliação direta sobre operações das empresas aéreas europeias no território chinês. O temor das represálias tem causado divergências internas, porém a Comissão insiste na adequação da medida e sua relevância para a liderança da Europa no campo da regulação climática.
No que toca ao Brasil, frente ao significativo crescimento da aviação civil, o número de empresas brasileiras que podem ser afetadas é relativamente grande - cerca de 80 delas registraram-se no cadastro criado para a implementação do esquema. Contudo, o impacto em termos de custo deve ser menor do que para outros países emergentes, segundo o Inventário Nacional de Gases-Estufa da Aviação Civil Brasileira, elaborado pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC). Isso pode ser explicado pelo consumo relativamente baixo de combustível da frota brasileira, de fabricação mais recente. Ainda assim, o governo mantém a postura de censura à medida europeia, bem como a ameaça de iniciar um contencioso na OMC.
Outra medida de potencial impacto para as exportações brasileiras está relacionada a um novo critério discutido no âmbito da política para biocombustíveis do bloco, o qual pode limitar a expansão almejada para o etanol brasileiro no mercado europeu. Aprovada em 2009, a Diretiva Europeia para Energia Renovável (EU/RED, sigla em inglês) integra o pacote climático e energético mais amplo e estipula a meta de elevar a participação de fontes renováveis na matriz energética para 20% até 2020 e ao menos 10% no setor de transporte. Para serem considerados dentro desta cota de aumento, e assim desfrutar dos incentivos governamentais relacionados, os combustíveis renováveis deverão atender a dois requisitos básicos: i) promover a redução de emissões de gases-estufa mínima de 35% em relação aos combustíveis fósseis; e ii) não serem produzidos a partir de matérias-primas cultivadas em terras de alta biodiversidade ou de alto estoque de carbono.
Em relação ao primeiro requisito, o etanol brasileiro possui larga vantagem sobre os concorrentes, pois seu balanço energético é bastante positivo, o que se traduz em redução de emissões superior a 70%. Para o segundo requisito, o governo e o setor privado brasileiros têm empreendido esforços para demonstrar que a expansão da cana-de-açúcar não se apoia no desmatamento, com foco evidente na região amazônica.
Até o momento, considera-se, para este último requisito, apenas o uso direto da terra, ou seja, o impacto causado pela cultura da matéria-prima (no caso, a cana) diretamente sobre a terra coberta por vegetação nativa. Um próximo passo discutido pela Comissão Europeia consiste em incorporar a este segundo requisito o critério de uso indireto da terra, segundo o qual o cultivo da matéria-prima para o biocombustível não pode levar ao deslocamento de outras culturas para as terras que se busca proteger. Muitos consideram que o impacto do uso indireto da terra para o desmatamento ou degradação pode ser tão significativo quanto o do uso direto.
Como segundo maior produtor e um dos poucos exportadores de etanol no mundo, o Brasil tem especial interesse no desenrolar dos debates sobre o uso indireto da terra pelas autoridades europeias. Especialistas brasileiros, tanto do governo quanto do setor privado, apontam a dificuldade de calcular o impacto do uso indireto. Particularmente, aponta-se como obstáculo a atribuição de um peso à influência de uma cultura para o deslocamento de outra, pela infinidade de fatores que podem influenciar nesse deslocamento.
A Comissão Europeia deve emitir seu parecer sobre o tema nos próximos meses, e então a questão será encaminhada pelos processos legislativos comunitários. Apesar das incertezas que cercam a incorporação e implementação desse critério, acredita-se que sua aprovação possa resultar em restrição significativa à expansão do etanol brasileiro no mercado europeu. Ainda que, no momento, a oferta de etanol seja insuficiente para atender à demanda doméstica, o setor se baseia na expectativa de expansão a longo prazo. Nessa esteira, o mercado europeu, juntamente com o estadunidense, compõe a principal frente de ampliação para as exportações brasileiras de etanol.
Equação dos desafios e estratégias
Os desafios apresentados são algumas das peças essenciais no cenário atual das relações comerciais entre Brasil e UE, entre as quais também se destacam as negociações para o acordo de livre comércio Mercosul-UE. Para lidar com esse complexo leque de desafios, o governo precisa atuar em diversas frentes.
No caso das medidas relacionadas a exigências ambientais, embora o acionamento do sistema de solução de controvérsias da OMC seja comumente invocado, na prática sua utilização é extremamente custosa e o resultado incerto. Isso porque, além do desgaste natural que envolve um litígio, os parâmetros da jurisprudência ambiental não estão ainda claramente firmados, a despeito dos avanços encontrados em decisões paradigmáticas do Órgão de Apelação. Como exemplo aplicado à Diretiva para biocombustíveis, a possibilidade de impor critérios relacionados à produção pelas regras da OMC - especialmente as exceções do artigo XX do GATT - é altamente debatida. Discussão semelhante pode ser levantada para a imposição de encargos sobre emissões de gases-estufa, para as quais a própria classificação como fator ou resíduo de produção é controversa. Além da dificuldade em prever o resultado de um julgamento sobre qualquer dessas questões, o cumprimento da sentença seria ainda mais incerto, em vista do histórico para casos que envolvem questões com forte componente político.
Ainda assim, não se pode negligenciar o peso político representado pela opção de iniciar um contencioso, desgaste que os dois lados buscarão evitar. Em vista disso, a ênfase no debate, negociação e lobbyinstitucional deve permanecer como opção estratégica para conciliar interesses, especialmente quando o conflito envolve a autonomia regulatória para formulação de políticas ambientais.
No caso da exclusão do SGP, a barganha política constitui a única alternativa, uma vez que a concessão do benefício é unilateral e discricionária. O MRE tem buscado ressaltar as desvantagens para a economia europeia da exclusão brasileira, como o prejuízo para o comércio entre empresas europeias e suas filiais instaladas no Brasil, bem como o aumento de custos para produtores e consumidores europeus.
Contudo, ainda que se consiga manter as preferências, o sucesso para o próximo ciclo pode ser paliativo. Entre os analistas, predomina a visão de que o Brasil precisa se adaptar rapidamente ao fim das preferências. A exclusão do país reflete a redefinição do seu papel frente à economia mundial, assim como a necessidade por maior autonomia e competitividade, especialmente frente à concorrência com os chineses. Nesse sentido, os esforços para enfrentar os gargalos que minam a competitividade se tornam ainda mais necessários. Acordos como parcerias estratégicas e o novo plano industrial constituem iniciativas a serem aprofundadas e aperfeiçoadas.
Há também oportunidades a serem exploradas, como a criação de um novo nicho de mercado pelo desenvolvimento de tecnologias para o uso de biocombustíveis na aviação, a fim de atender à exigência europeia. O Brasil encontra-se em posição vantajosa para aproveitar essa abertura, vencida a dificuldade de oferta pelo setor.
Vale ressaltar a conexão entre os desafios e soluções levantados. Nesse sentido, conforme destacado, a barganha em torno da renovação ou exclusão do SGP tem sido condicionada ao desenrolar das negociações do acordo Mercosul-UE. De forma semelhante, o resultado de cada uma dessas frentes pode atenuar ou agravar as tensões envolvidas com as novas exigências de fundo ambiental. O quadro de crise ressalta essas ligações, uma vez que a agenda política é tomada pelos temas relacionados a essa pauta.
Ainda que o crescimento da China, com sua forte demanda por produtos primários, compense as perdas pela desaceleração da UE e dos EUA, as metas brasileiras de longo prazo - como uma maior participação de manufaturados na pauta exportadora e o apoio a setores estratégicos - demandarão o aprofundamento dos esforços para manter e ganhar espaço no mercado europeu.
Ver: Valor Econômico. Empresas propõem revisão da parceria entre Brasil e UE. (02/08/2011). Disponível em: <http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/8/2/empresas-propoem-revisao-da-parceria-entre-brasil-e-ue>. Acesso em: ago. 2011
Ver: Pontes Bimestral, Vol. 5, No. 5, nov. 2009. Disponível em: <http://ictsd.org/i/news/pontes/57086/>; Pontes Quinzenal, Vol. 5, No. 6, mai. 2010. Disponível em: <http://ictsd.org/i/news/pontesquinzenal/74937/>.
A aviação não está coberta pela regulação climática conduzida sob a égide da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, já que o Protocolo de Quioto exclui o setor de suas provisões para redução de emissões. Os debates sobre a realização de esforços conjuntos ou a eventual celebração de um compromisso multilateral setorial para a redução de emissões no setor de aviação tem sido conduzidos no âmbito da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI). Contudo, as propostas não lograram atingir um consenso até o momento.
Aprovado em 2009, o pacote europeu para clima e energia tem como principais metas a redução das emissões globais em 20%; a redução no consumo de energia em 20%; e o aumento no uso de energias renováveis em 20%. Para mais detalhes sobre o pacote, acesse: <http://ec.europa.eu/clima/policies/brief/eu/package_en.htm>.
O setor produtor de cana-de-açúcar tem promovido estudos sobre o impacto do uso indireto da terra, especialmente por meio do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (ICONE). Nesse sentido, ver: NASSAR, André. Mudanças no uso da terra e expansão da produção agrícola. In: Agricultura e mudanças climáticas: artigos selecionados. ICONE, 2009. Disponível em: <http://www.iconebrasil.org.br/arquivos/noticia/1945.pdf>. Acesso em: fev. 2011.
Entre as estratégias para ampliar e aprofundar os laços comerciais, destaca-se a Parceria Estratégica Brasil-UE. Ver: <http://www.cni.org.br/portal/data/files/FF80808129D8EF110129DCF626BC30D9/Declaracao%20conjunta%20FINAL_PT.pdf>. Sobre o Plano Brasil Maior, ver: Pontes Quinzenal, Vol. 6, No. 13, ago. 2011. Disponível em: <http://ictsd.org/i/news/pontesquinzenal/112528/>.

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