sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A leniência com a Argentina


Há uma constante nas relações comerciais entre Brasil e Argentina: ao aproximar-se de cada eleição presidencial, intensifica-se o protecionismo contra mercadorias brasileiras, que já é frequente. Esta questão é penosa porque entre sócios e vizinhos não é normal que os litígios sejam constantes. Nesse terreno reside a única desavença significativa entre nós.
Desapareceram os riscos de uma absurda corrida armamentista nuclear, assim como os planos B que teciam cenários de guerra convencional. Foram-se os preconceitos recíprocos que criavam entraves à aproximação e à amizade. Não se discute mais acirradamente a questão da futura indicação de um dos dois países para uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Existem profundos vínculos econômicos que geraram grandes investimentos brasileiros e argentinos nos respectivos países, e não ocorre a ninguém considerar que existe aí um desígnio de dominação. Segundo as variações do câmbio ou das estações, um enorme fluxo de turistas se desloca para o destino mais atraente em um dos dois países. O presidente argentino Saénz Peña pronunciou há um século sua famosa frase: "Tudo nos une e nada nos separa". Hoje é quase assim, com a notória exceção do comércio. Vale a pena investigar o assunto. Sem cansar o leitor,vejamos apenas alguns poucos números.
Em 2010, o Brasil exportou um total de US$79,6 bilhões de produtos industriais, e Argentina foi o destino de US$16,8 bilhões, ou seja, 21% do total. Isto faz de nosso vizinho o principal comprador de nossos manufaturados.
As empresas brasileiras investem gerando empregos e impostos na Argentina. Esse investimento representa 30% do setor siderúrgico, 42% do cimento, 25% do têxtil, 20% do setor de alimentos, 18% do petróleo, 11% da mineração.
Como afirmou recentemente um grande analista do comércio internacional, Ricardo Markwald, "a característica argentina é a alta volatilidade no uso dos instrumentos de política e periódica subordinação da estratégia de inserção internacional a urgências e objetivos de política doméstica. A relação bilateral com o Brasil é administrada em função de demandas de curto prazo, essencialmente interesses defensivos".
A arbitrariedade não se restringe ao comércio com o Brasil. No plano internacional, o país continua insolvente e portanto excluído do crédito internacional. No nível interno, são sobejamente conhecidas as medidas casuísticas do governo em relação às reservas do Banco Central, à Previdência Social, à grande imprensa e até ao televisionamento do futebol. Estas são as regras do jogo interno na Argentina dos Kirchner.
Contudo os números significativos das exportações brasileiras não refletem benevolência ou voluntarismo do governo argentino - atual ou passado - ou de seus importadores -, mas a competitividade no mercado e a qualidade de nossos produtos, malgrado as enormes dificuldade, amplamente conhecidas, que as empresas brasileiras enfrentam internamente para exportar.
Desde 2003, o governo brasileiro vem tratando dos problemas comerciais com a Argentina com um critério principal: a leniência. O fundamento errôneo desta política é que, por ser um parceiro estratégico, nosso grande vizinho do Sul precisa ser compreendido e acatado mesmo quando decide contra interesses importantes do Brasil. Por exemplo, aceitamos a aplicação de salvaguardas (autorização de barreiras às importações) contra produtos brasileiros em 2006, isto é, firmamos um documento que representa uma ilegalidade no Mercosul e que dá ao governo argentino a faca e o queijo na mão para paralisar exportações de produtos brasileiros. Em 1999, havíamos rejeitado com energia esta fórmula e a Argentina acabou por conformar-se abdicando de sua decisão unilateral de criar salvaguardas.
O jornalista Sergio Leo escreveu em maio passado no "Valor Econômico": "Discretamente, o governo brasileiro começou a adotar retaliações comerciais à Argentina, em represália à retenção de produtos brasileiros nas alfândegas do país vizinho." Não me ficou claro até onde foi esta nossa firmeza. Em suma, com relação a um parceiro da importância da Argentina, aceitamos timidamente que sejam dirigidas contra nós medidas que violam as regras da OMC e do Mercosul, prejudicam nossas empresas e vão na contramão da chamada relação estratégica. Creio, porém, que nosso acatamento de cada medida distorsiva do comércio só provoca o aumento da fatura que nos é apresentada, posto que é corretamente interpretada pelas autoridades de Buenos Aires como predisposição nossa de acabar aceitando qualquer agravo de política comercial e pagando a conta.

Por: LUIZ FELIPE LAMPREIA foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2001) e é vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Fonte: O Globo

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