terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Por que decidimos intervir em um caso na Suprema Corte dos EUA?

Dentre os casos que serão julgados pela Suprema Corte dos Estados Unidos este ano está o United States v. Microsoft Corporation, que discute, basicamente, se o governo estadunidense pode, mediante ordem emanada por um juiz nos Estados Unidos, obter o conteúdo de comunicações armazenadas em servidores localizados fora do país. Muito além de definir o alcance que ordens de juízes estadunidenses podem ter sobre os dados controlados pelas empresas de Internet sediadas lá, o caso traz repercussões sérias para as discussões sobre jurisdição e acesso a dados de usuários de internet no resto do mundo.
Para contribuir com o debate que será travado na Suprema Corte, o InternetLab, centro independente de pesquisa em direito e tecnologia, protocolou ontem peça de amicus curiae, levando à apreciação da Corte a experiência brasileira com o tema e o impacto que a decisão pode causar globalmente, a depender da forma como o caso for solucionado.
Entenda o caso
No âmbito de uma investigação de tráfico de drogas, autoridades estadunidenses obtiveram uma ordem judicial determinando que a Microsoft quebrasse o sigilo de e-mails que estão armazenados em servidores da empresa localizados na Irlanda. Em vez de entregar o conteúdo dos emails requeridos, a Microsoft decidiu questionar a legalidade da ordem. Tendo sido vencida no District Court for the Southern District of New York, a empresa recorreu à Court of Appeals for the Second Circuit, que reverteu a decisão anterior, dando ganho de causa à Microsoft.
O governo estadunidense recorreu então à Suprema Corte, que admitiu o caso para julgamento em outubro de 2017. A principal questão em disputa é se a ordem do juiz estadunidense para a entrega de conteúdo de comunicações armazenadas fora dos Estados Unidos poderia ser considerada “extraterritorial”. Se sim, ela seria ilegal.
O governo dos Estados Unidos nega que o caso implique qualquer exercício extraterritorial de poder. Como a Microsoft poderia acessar as informações dos Estados Unidos, país onde serão entregues a autoridades de investigação, o governo argumenta que é irrelevante o fato de que os dados estejam armazenados no exterior.
A Microsoft, por sua vez, defende que a legislação americana em questão (o Stored Communications Act) nunca pretendeu conferir aos juízes poderes que iriam para além das fronteiras dos Estados Unidos. Como a empresa está sendo obrigada a realizar a apreensão dedados na Irlanda tal como se agente do Estado fosse, haveria, sim, exercício de poder extraterritorial, o que tornaria essa ordem de quebra de sigilo ilegal. Para que o governo estadunidense obtenha acesso às informações requeridas, a Microsoft defende que seria preciso seguir os procedimentos previstos no acordo de cooperação mútua (MLAT) em matéria penal celebrado com a Irlanda.
Repercussões no Brasil
Para além das questões de interpretação da legislação americana, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos definirá os limites de alcance do governo estadunidense sobre comunicações realizadas a partir de serviços oferecidos por empresas de Internet sediadas naquele país. Isso significa dizer que uma decisão favorável ao governo estadunidense daria a ele poderes para requisitar a essas empresas dados sobre comunicações de quaisquer cidadãos, independentemente do local onde estejam armazenadas ou do país onde tenham ocorrido. Isso ampliaria significativamente as prerrogativas de acesso a comunicações por parte do governo estadunidense, o que poderia ocorrer a despeito de essas informações estarem protegidas por legislações nacionais de outros países, que podem conter garantias e mecanismos próprios de acesso a esses mesmos dados. Isso incluiria dados dos mais de 100 milhões de brasileiros usuários de grandes plataformas de internet sediadas nos Estados Unidos.
Além disso, a decisão pode representar um precedente alarmante na medida em que reconheceria o poder de um governo (no caso o dos Estados Unidos) de acessar informações de cidadãos independentemente de elas também estarem sob a jurisdição de outros países, cujas legislações podem estabelecer graus diferentes de proteção à privacidade e devido processo legal. Na prática, se favorável ao governo estadunidense, a decisão seria um forte argumento para que autoridades de investigação de outros países demandem o mesmo tipo de prerrogativa, instaurando uma dinâmica de acesso a comunicações de usuários que passa por cima dos acordos de cooperação internacional existentes, pensados justamente para equalizar esses tipos de conflitos de jurisdição.
Nesse contexto, vale lembrar os notórios confrontos entre autoridades de investigação brasileiras e empresas estadunidenses. No âmbito de investigações criminais no Brasil, é comum que autoridades brasileiras obtenham ordens de quebra de sigilo de comunicações eletrônicas, mas se deparem com dificuldades no cumprimento dessas ordens por parte de empresas estadunidenses. A principal razão apontada é que os dados buscados estão fora do território brasileiro, controlados pelas empresas-matrizes, as quais estão proibidas pela legislação americana (o mesmo Stored Communications Act) de entregar essas informações a governos estrangeiros fora dos procedimentos diplomáticos usuais, os MLATs.
Conflitos desse tipo já levaram a prisões de executivos e até mesmo bloqueios de aplicativos (antes mesmo que “criptografia de ponta a ponta” fosse uma barreira técnica!) e continuam gerando multas milionárias impostas a empresas subsidiárias sediadas no Brasil. Em dezembro do ano passado, a questão foi levada ao Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 51.
Nela, a ASSESPRO (Federação das Associações de Empresas de Tecnologia da Informação) pede que seja assentada a constitucionalidade de diversos mecanismos de cooperação internacional para obtenção de conteúdo de comunicações. Apesar de o Marco Civil estender a jurisdição brasileira para dados armazenados, gerados e processados no Brasil e a quaisquer empresas que oferecem serviços no país, tais dados e empresas também estão, muitas vezes, submetidas à legislação estadunidense, que, como dito, proíbe a entrega de conteúdo de comunicações a autoridades estrangeiras fora dos procedimentos estabelecidos nos MLATs.
A discussão que o Supremo Tribunal Federal terá que enfrentar não é simples: passa, também, por reconhecer as demandas das autoridades de investigação, que alegam ter seu trabalho obstruído pela ineficiência e morosidade desses acordos de cooperação. Nesse sentido, a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos certamente influenciará a argumentação de nossos ministros.
O amicus do InternetLab: principais argumentos
Partindo dos resultados de pesquisa da área “Privacidade e Vigilância”, a intervenção do InternetLab no processo busca engrossar as vozes que veem na prerrogativa invocada pelo governo estadunidense uma medida extraterritorial que colocará em xeque a utilização dos mecanismos de cooperação internacional para a produção de provas no contexto digital, o que acirra os conflitos de jurisdição e passa por cima das garantias à privacidade embutidas nesses mecanismos. Nesse sentido, nossa intervenção defende três ideias principais:
Primeiro, que uma ordem de quebra de sigilo de um juiz estadunidense tem aplicação e efeitos extraterritoriais sempre que as comunicações buscadas estão localizadas em um país com o qual os Estados Unidos têm um acordo de cooperação mútua. Nesses casos, os países em questão decidiram, no exercício de suas soberanias, que o mecanismo apropriado de acesso a evidências que implique os dois países é a via diplomática: assim se garante o devido processo legal. No Brasil, esse procedimento está consubstanciado no Decreto n. 3.810/2001.
Segundo, que uma ordem de quebra de sigilo de um juiz estadunidense tem aplicação e efeitos extraterritoriais sempre que as comunicações buscadas estão submetidas, simultaneamente, à jurisdição de países que estabelecem regras conflitantes sobre o acesso a essas informações. No caso de dados gerados no Brasil, ao mesmo tempo em que o Marco Civil da Internet, em seu artigo 11, determina a aplicação da legislação brasileira a todas as informações coletadas, processadas ou armazenadas em território nacional, o que incluiria, em tese, a entrega dessas informações às autoridades de investigação mediante ordem judicial, o Stored Communications Act, legislação à qual as empresas estadunidenses que atuam no país também estão submetidas, proíbe a entrega de conteúdo de comunicações a autoridades estrangeiras. Nesse caso, a dupla jurisdição sobre esses dados não pode ser ignorada por juízes dos países envolvidos.
Terceiro, que as questões envolvidas no caso devem ser encaradas como escolhas de política pública e, portanto, tomadas por outras instâncias. Os Poderes Legislativo e Executivo devem atuar para aperfeiçoar os acordos de cooperação de assistência judiciária internacional, tornando-os mais eficientes, e avançar discussões sobre modelos alternativos de cooperação, de forma a garantir a preservação de interesses de estados soberanos e de suas autoridades de investigação, mas também do direito à privacidade, e do devido processo legal nos casos que envolvem acesso a dados de usuários de internet.
peça completa, que foi elaborada em colaboração pro bono com o escritório Boies Schiller Flexner LLP, já está disponível na página da Suprema Corte dos Estados Unidos. Destacamos o fato de que a sua elaboração não envolveu nenhum tipo de contrapartida por parte da Microsoft ao InternetLab.
O futuro
A Suprema Corte dos Estados Unidos deve decidir o caso até setembro deste ano. Com o fim do prazo para a apresentação de amici curiae ontem, dia 18 de janeiro, encerram-se as oportunidades de intervenção no processo. Enquanto isso, no Brasil, aguardamos o trâmite da ADC n. 51, que, até o momento, conta apenas com uma peça de amicus curiae elaborada pelo Facebook Brasil.
Equacionar uma questão como essa é uma tarefa que ultrapassa os limites da técnica jurídica. É uma decisão de política pública e que envolve os interesses de diferentes setores e segmentos da sociedade. Por essa razão, comprometido com o debate informado sobre o tema, o InternetLabtem promovido discussões e produzido pesquisa sobre acesso a dados digitais no âmbito do processo penal, mecanismos de cooperação internacional e propostas de reforma. Com isso buscamos entender as dificuldades enfrentadas por autoridades, as obrigações impostas a empresas, e os gargalos do atual sistema de cooperação internacional, de forma a atuar para que as dificuldades sejam mitigadas, as obrigações conflitantes sejam diminuídas, e os gargalos sejam corrigidos. Tudo isso respeitando-se os princípios do Marco Civil da Internet, que reconhece a escala mundial da rede e protege direitos humanos como a privacidade e a liberdade de expressão.
Nossa atuação na Suprema Corte dos Estados Unidos vai justamente no sentido de instar seus ministros e ministras a levar em consideração todos esses elementos no julgamento.

Dennys Antonialli – Professor de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e diretor do InternetLab (dennys@internetlab.org.br)
Jacqueline de Souza Abreu – Doutoranda na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e coordenadora da área de Privacidade e Vigilância do InternetLab (jacqueline@internetlab.org.br)

Fonte: JOTA

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