quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Surgimento do termo "vara judicial" e outras expressões

É curioso como a história de uma instituição pode estar contida no seu vocabulário  e nós não nos damos conta disso. É o caso do termo “vara” que até hoje é utilizado no local físico em que o juiz exerce a jurisdição, expressão utilizada nas justiças comuns estaduais brasileiras.
Passemos à reconstrução do seu surgimento. Portugal formou-se na península ibérica em área em que se fixaram diversos povos (ver "A Origem dos Portugueses") de origem celta (ver "Los Celtíberos"). Tais povos tiveram a influência romana, germânica  dos vândalos, alanos, suevos (ver "Suevos"), visigodos (ver "Os Antepassados Caucasianos dos Portugueses"), posteriormente, dos mouros até a reconquista católica portuguesa, sem prejuízo de outros povos que ali se instalaram individualmente ou em pequenos grupos como imigrantes em tempos mais recentes. 
Na antiga península ibérica, ainda que com influências de outras civilizações, os celtiberos mantinham suas tradições. Os celtas acreditavam num espírito da floresta e questões que hoje chamamos de judiciais eram discutidas em assembleias de todos os membros da tribo em meio a uma clareira dentro da floresta.
Num segundo momento, surgem cidades e os povos deixam de se reunir na floresta e passam a simbolizar seu espírito numa grande árvore. Em volta da árvore, faziam a assembleia.
As cidades cresceram e a árvore foi substituída por um símbolo de força. Ao iniciar um julgamento pelo povo, fincava-se uma grande lança em volta da qual se reunia a assembleia. A palavra portuguesa para a lança era VARA.
A vara simbolizava o início do processo, o julgamento e a jurisdição comunitária.
Além da expressão vara, é possível imaginar que esse seja o nascedouro do Júri em questões de crimes dolosos contra a vida, ainda empregada no direito brasileiro. O Júri seria remanescente histórico da assembleia comunal original.
Naturalmente, se por um lado pareça linda a concepção do povo julgando em assembleia, por outro, o julgamento pode sair dos limites da causa e acomodar outros interesses - perseguições políticas das famílias predominantes, antipatias sociais, exclusão, perseguição religiosa, entre outros. Todos esses elementos podem macular a realização da justiça no caso concreto. Esse fato não passou despercebido na época da formação do Estado nacional e da percepção dos seus primeiros soberanos - os reis.
Relembra-se que concomitantemente com os julgamentos comunais iniciados pelos antecedentes da câmara municipal, a igreja tinha um sistema de direito próprio e realizava julgamentos civis, além dos de direito canônico ainda existentes. Daí a expressão "reclamar para o bispo".
Os julgamentos locais ou pela igreja faziam com que houvesse uma instabilidade política e uma sensação de insegurança no povo.
Assim, após a reconquista cristã portuguesa, o Rei que concentrava o Poder como soberano, mais alta autoridade não religiosa, passou a assumir funções de justiça.
Primeiramente, o Rei de Portugal, D. Dinis (1279 a 1325), chamou para si os recursos de decisões judiciais dos senhores (câmaras ou concelhos* e nobreza) em 1282. A competência recursal da jurisdição da Igreja foi obtido pelo acordo com o Papa Nicolau IV em 1289 (BOURDON, 2013, p. 27).
A competência recursal não bastava, pois a justiça local continuava promovendo interesses próprios e não a Justiça. Coube ao rei D. Afonso IV (1325 a 1357) a criação de juízes externos aos interesses locais e passar a promover a justiça delegada pelo rei – a imparcialidade era promovida por ser o julgador alguém de fora da comunidade - juiz de fora -, permitindo alguma imparcialidade. Criaram-se as corregedorias de comarcas e, na instância superior, separou-se a jurisdição civil da criminal. Caberia a um grupo de magistrados mais elevado o julgamento cível em segunda instância formado pelos desembargadores do Paço (BOURDON, 2013, p. 29)
No caminho do desenvolvimento do processo, a causa vai passando do delegado mais longínquo (juiz), para os delegados mais próximos do rei (desembargadores) até chegar ao que a época era o soberano e titular da jurisdição (o Rei). Naturalmente, pode-se deduzir que o “efeito devolutivo” recursal é porque devolvia ao rei e, no evoluir dos tempos, aos seus delegados imediatos (desembargadores) a apreciação da matéria. Por especulação nossa, pode-se concluir que a própria expressão comarca deve ser a separação do poder jurisdicional dos demais poderes da nobreza: deveria existir a marca titularizada pelo marquês e a simultânea "co-"marca em que o juiz exercia a jurisdição.
Daí para frente, os diversos reis foram editando regras que passaram a criar um emaranhado de leis e um direito confuso já na Idade Média, surgindo então a ideia de uma sistematização ou unificação das leis. Os trabalhos de compilação das ordenações foi iniciado na época de D. João I de Portugal e terminado e publicado na época da menoridade de D. Afonso V (1438- 1481) pelo jurista Rui Fernandes. Em homenagem ao reinante na época do início dos efeitos da compilação, recebeu o nome de Ordenações Afonsinas (BOURDON, 2013, p. 38).
Posteriormente, com o crescimento do absolutismo em Portugal, D. Manuel I (1495-1521) diminuiu os poderes das instituições municipais, generalizou a figura do juiz de fora, fazendo reformas nos forais em 1498. Em 1513, encarregou o jurista Rui Boto a rever as ordenações anteriores. Em 1521, vieram as Ordenações Manuelinas (BOURDON, 2013, p. 40). Posteriormente, com a União das coroas portuguesa e espanhola, Felipe V de Espanha (Filipe I de Portugal) reuniu uma comissão de juristas lusos para compilar e atualizar as regras das ordenações (BOURDON, 2013, p. 56) cuja vigência iniciou-se no reinado seguinte – as Ordenações Filipinas. Essa legislação que parece distante no tempo e espaço vigorou como lei civil no Brasil até o final de 1916, com a promulgação do Código Civil de 1o de janeiro de 1916 e início dos seus efeitos em 1º de janeiro de 1917 (art. 1.806 da Lei 3.071/1916).
Vê-se a tendência histórica de que para pacificar o povo era preciso promover a justiça, afastando a arbitrariedade e a parcialidade (por isso a ideia de um juiz conhecedor das leis e que vem de fora da comunidade) e com decisões efetivas. Logo, o Rei/Estado passou a desenvolver tribunais e juízes que falavam em seu nome com a incumbência de andar pelos diversos rincões do reino chamando as causas e as executando. O  Magistrado agia com poder delegado originário do rei (hoje do Estado) e do tribunal (delegados mais próximos do soberano) e tinha um grupo de soldados para impor suas decisões após o julgamento. Todos esses elementos continuam sendo desejados e buscados pelo povo sob o nome de efetividade, celeridade e eficiência da Justiça.
O mais curioso de tudo isso é que a tradição lusa pode ser constatada e apreciada no Brasil, inclusive porque as leis eram aqui cumpridas.
Mas o que tudo isso diz respeito ao termo Vara? Das tradições das florestas, as armas se tornaram o símbolo da jurisdição por lei. 
O que diziam as Ordenações Manuelinas (Livro 1, Tit 44: Dos Juizes Ordinarios, e do que a seus Officios pertence*)?


55 item os Juizes Ordinários traguam varas vermelhas continuadamente, quando pola Villa andarem, sob pena de quinhentos reaes por cada vez que sem ella for achado; e os Juizes de Fóra, que Nós Mandamos a alguas Cidades, Villas, ou Luguares, trazeram as ditas varas brancas, sob a dita pena. *

Determinava o livro segundo das Ordenações Filipinas, em seu título LXV, no português da época:

Os Juizes ordinários e outros, que Nós de fora mandarmos, devem trabalhar que nos lugares e seus termos, onde forem Juizes, se não façam malefícios, nem malfeitorias. E fazendo-se, provejam nisso, e procedam  contra os culpados com diligencia.
1 . E os Juizes ordinarios (1) trarão varas vermelhas, e os Juizes de fóra (2) brancas continuadamente, quando pela villa andarem, sob pena de quinhentos réis por cada vez, que sem ella forem achados.  *
(Código Filipino, ou, Ordenações e Leis do Reino de Portugal)

A lança ou vara era o símbolo da jurisdição e era emblema da força do Estado, assim passou de símbolo de força para o local fixo de audiência até passar ao local de trabalho do Juiz.
Mas, qual não foi nossa surpresa ao verificar a existência da vara do juiz ordinário (vermelha) daqueles tempos passados no interior de Minas Gerais, mais especificamente no acervo do Museu da Independência pertencente ao Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) do Ministério da Cultura. Ao lado dela, há outra Vara dourada que não se sabe se é a branca do Juiz de Fora mais ornamentada ou se é vara que remete ao início dos "concelhos*" portugueses, um símbolo de força adornado para a câmara municipal. A descrição dos objetos na descrição do Museu se dá como "de uso do Juiz ou de Vereador".
Como o juiz era punido se não portasse a arma que simbolizava a jurisdição, plausível entender que a Vara Vermelha esteja desgastada pelo uso cotidiano.
Interessante notar que a Vara Vermelha que era o símbolo da jurisdição e da atividade do juiz ordinário passou a emprestar significado e simbologia a outros elementos. Na atualidade, além do próprio termo "Vara", que, como vimos, vem de tempos medievais até nossos dias, como o lugar onde se estabelece o juiz; a cor vermelha passou a ser considerada a cor da Justiça. Na evolução, o vermelho passou a ser a cor dos advogados e dos bacharéis em direito dentro dos rituais de formatura (faixas e anéis vermelhos para quem os usa - ver abaixo indicações de páginas sobre as cores desses adornos).

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