terça-feira, 26 de julho de 2016

Economista, trans e feminista, McCloskey quer reinterpretar o capitalismo

A trajetória de Deirdre McCloskey é encantadora e improvável . Na década de 70, ela se chamava Donald, era Ph.D pela Universidade de Harvard e um dos mais destacados professores da Universidade de Chicago. Brilhante, ele diferenciou-se de seus colegas da Universidade – mais ligados aos temas duros e matemáticos da teoria econômica – ao analisar essa ciência também sob a ótica da história, da retórica, da filosofia e da literatura.
Casado e com dois filhos, em 1995, aos 53 anos, Donald tornou-se famoso quando passou a se identificar como a senhora Deirdre McCloskey. Sua transição foi brilhantemente descrita no livro “Crossing: a Memoir”. Ela é a Laerte da economia – com a vantagem de ser assustadoramente inteligente (e, talvez por isso, com menor apelo midiático).
Desde então, sua carreira acadêmica só tem melhorado. Além de descontruir gênero, McCloskey é autora de uma trilogia fantástica sobre história da economia, que começou a ser lançada em 2010. Seu trabalho acadêmico recente tem sido dedicado a explicar a rápida e crescente evolução da riqueza mundial a partir do século 18.
Não, não se trata de um trabalho chato restrito aos muros da Universidade onde ela ensina. Essa pesquisa diz respeito às causas que possibilitaram uma queda drástica na pobreza e um aumento absurdo na qualidade de vida de bilhões de pessoas nos últimos dois séculos.
O “enigma” que Deirdre decidiu investigar é intrigante. Durante milênios, a extrema pobreza era a regra para a maioria da humanidade. Em um espaço de 200 anos, a renda disponível saltou consideravelmente. Não foi um salto pequeno, mas algo extremamente absurdo e inigualável na História.

Exemplo: McCloskey descobriu que, nos dois séculos depois de 1800, os bens e serviços disponíveis para uma pessoa de renda média na Suécia ou em Taiwan subiu por um fator de 30 ou 100. Não é 100%, entenda. Um fator de 100 (a maior estimativa) representa um aumento de 10.000%. Já um fator de 30 (a menor estimativa) representa 2.900%. McClosey chama esse fenômeno de “O Grande Enriquecimento”.
O Grande Enriquecimento dos últimos dois séculos tem ofuscado qualquer um dos enriquecimentos anteriores na História. Explicá-lo é a tarefa científica central da história econômica. Esse tema também é importante para qualquer outro tipo de ciências sociais. Ajuda a explicar a emancipação feminina, a queda do trabalho infantil, a revolução sexual, a diminuição de guerras. O Grande Enriquecimento ajuda a entender, sobretudo, por que grande parte de nós não virou adubo em plantações e pode dar-se ao luxo de passar horas na frente de um computador.
O que explica o Grande Enriquecimento, afinal? McCloskey afirma que fatores materiais – como a acumulação de capital, as instituições e o comércio internacional – não seriam suficientes para explicar esse salto tão grande. Todos esses “fatores” foram rotineiros nas principais sociedades organizadas da Eurásia, do antigo Egito, da China, do Império Otomano, da Meso-América e dos Andes. Rotinas não poderiam explicar um estranho acontecimento na história da humanidade. Segundo ela, o que explica o absurdo aumento da riqueza disponível é algo completamente novo: uma mudança na mentalidade da época.
McCloskey diz que o Grande Enriquecimento foi possível por meio de uma revolução, em câmera lenta, nas convicções éticas sobre virtudes e vícios na Europa moderna. Em especial, por um nível muito mais elevado de tolerância que levou os europeus a enxergar com mais simpatia os inovadores, os produtores e os comerciantes. A opinião positiva sobre a burguesia possibilitou uma dispersão sem precedentes dos benefícios do comércio, da inovação tecnológica e do progresso.
Como explica Rubens Novaes, a respeitabilidade, antes um privilégio da nobreza e do clero, passou a ser estendida ao cidadão burguês. Para ser respeitado e admirado, bastava progredir. Esse respeito conferiu dignidade ao trabalho e estimulou o esforço comercial e produtivo. A tese de McCloskey é revolucionária:ideias e crenças – que formaram um ambiente social e institucional propício ao desenvolvimento tecnológico e ao comércio – explicariam a explosão do crescimento econômico verificado nos últimos séculos.
McCloskey diz que esse processo continua vivo até hoje, alastrando-se por outras regiões. A lenta revolução das ideias que se verificou na Europa moderna também poderia ser observada atualmente em sociedades asiáticas – e teria impulsionado, por exemplo, o crescimento da Coreia do Sul, de Taiwan, de Cingapura, da China e da Índia. O reconhecimento de que a interação nos mercados e o enriquecimento por meio do comércio e do empreendedorismo são virtuosos seria pré-condição para os fatores materiais que aumentaram o crescimento econômico desses países. Não à toa, já seria possível vislumbrar o fim da pobreza absoluta no mundo em uma ou duas gerações.
A análise de McCloskey também ajuda a explicar muito sobre as dificuldades que o Brasil ainda enfrenta para crescer e se desenvolver. Somos, afinal, uma sociedade bastante suspeita das virtudes do capitalismo, do comércio e do empreendedorismo.
Para quem se interessa pela dimensão cultural da política e da economia, a leitura dos dois primeiros volumes da trilogia de Deirdre é essencial: “The Bourgeois Virtues: Ethics for an Age of Commerce” e “Bourgeois Dignity: Why Economics Can’t Explain the Modern World“, disponíveis em inglês. O terceiro volume, “Bourgeois Equality: How Ideas, Not Capital or Institutions, Enriched the World”, será lançado em 2016, mas já conta com um resumo de sete páginas, escrito pela autora, aqui.

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