Nadia Eweida é cristã copta,
súdita britânica e ex-empregada da companhia aérea British Airways. A empresa
possuía um código interno para seus empregados, que proibia o uso de adereços
alheios ao uniforme. Ela usava um cordão com um crucifixo e isso foi considerado
irregular pela British Airways, que a licenciou sem vencimentos após a recusa
de Nadia Eweida em retirar o símbolo de sua fé religiosa ou de se transferir
para uma atividade interna.
Em 2006, a empregada da companhia
aérea foi aos tribunais britânicos sob a alegação de sofrer discriminação
religiosa. Na ocasião, como noticiado pela BBC, o porta-voz da Diocese de Bath
e Wells declarou que a British Airwaysusava de dois pesos e duas medidas: para
os empregados não-cristãos, que ostentavam turbantes ou véus, por razões
religiosas, havia tolerância, mas, quanto aos cristãos, a empresa britânica era
hostil à demonstração pública de sua fé. Quando a disputa veio a público,
alguns parlamentares britânicos acusaram a empresa de ser contrária aos cristãos
ou ainda inflexível demais em suas regras internas. A British Airways, em sua
defesa, afirmou que tão somente punha em prática sua política de pessoal quanto
ao vestuário e que não discriminava os símbolos cristãos, dado que as
restrições se aplicavam a quaisquer joias ou adereços.[1]
Em 2007, a companhia aérea mudou
sua política interna, mas recusou-se a pagar o período em que Nadia Eweida
esteve licenciada. Com isso, Eweida prosseguiu na disputa e, em janeiro de
2008, após recusar uma oferta de transação judicial, foi derrotada em primeiro
grau. Nessa decisão, está assentado não ser aquela instância o lugar adequado
para se discutir questões de fé. Na fundamentação, o juiz da causa destacou a
postura da aeroviária de não querer trabalhar no dia do Natal e de tentar
converter um colega homossexual. A questão foi devolvida ao Employment Appeal
Tribunal, que denegou o recurso interposto por Nadia Eweida. Após outra derrota
na Court of Appeal, ela levou o caso à Suprema Corte, que, em 2010, não
conheceu do recurso.
A Corte Europeia de Direitos
Humanos, em janeiro de 2013, como divulgado esta semana pelaConJur — clique aqui para ler —, julgou o caso e
decidiu que houve violação do artigo 9º da Convenção Europeia de Direitos
Humanos, além disso inverteu o pagamento das custas e ordenou que Nadia Eweida
recebesse indenização de 30 mil euros.
O fundamento da decisão da Corte
Europeia, que foi tomada por um colegiado presidido por David Thór
Björgvinsson, da Islândia, tendo juízes da Polônia, do Reino Unido, da Finlândia,
Bulgária, Montenegro e Malta, se baseia em dois argumentos centrais:[2]
a) A despeito de Nadia Eweida
trabalhar em uma empresa privada, na qual não pode haver interferência direta
do Estado, a Corte Europeia tem a prerrogativa de examinar se houve a proteção
adequada e suficiente, na ordem interna, do direito à livre manifestação
religiosa da recorrente. À semelhança de diversos Estados europeus, o Reino
Unido não dispõe de regulação específica sobre o uso de adereços religiosos por
empregados ou sobre a exposição de símbolos de fé em locais de trabalho. No
entanto, o código interno da British Airways deveria ter sido apreciado de
maneira detalhada pelos tribunais internos da União Europeia, com o objetivo de
aferir sua adequação e sua proporcionalidade. Por outro lado, a ausência de
proteção legislativa explícita no Reino Unido não poderia dar margem a que a
recorrente fosse impedida de exercer seu direito à manifestação religiosa;
b) No que se refere ao critério
da isonomia, a conduta da empregadora mostrou duas incoerências: i) admitiu que
empregados de outras religiões exibissem adereços ou símbolos de suas crenças,
como turbantes e hijabs, sem que isso afetasse de maneira prejudicial a imagem
corporativa da British Airways; ii) a posterior revogação dos dispositivos do
código de conduta da empresa, a fim de permitir o uso em lugar visível de peças
indicativas da religião do empregado, é reveladora do quanto a proibição não
era relevante para os negócios da companhia.
Uma vez mais, a Corte Europeia de
Direitos Humanos atuou de maneira incisiva na modificação de parâmetros
interpretativos de tribunais domésticos. Desta vez, no caso britânico, o
acórdão encontrou amplo respaldo político e popular. O primeiro-ministro do
Reino Unido David Cameron declarou que estava “encantado” com a decisão, sendo
certo que “as pessoas não devem sofrer discriminação por causa de suas crenças
religiosas”.[3]
Outra importante consequência
está na adoção do que se poderia chamar de uma “nova vedação à discriminação
indireta”, especialmente na Europa, um continente pouco acostumado com essa
forma extraordinária de proteção dos valores religiosos, (ainda) muito forte
nos Estados Unidos da América. Dito de outro modo, a “nova” modalidade de “não
discriminação indireta” implica um dever (dirigido aos empregadores) de
acomodar o ambiente de trabalho e as regras corporativas (de caráter
pretensamente potestativo) à religião de seus empregados. Não basta mais
protegê-los contra a discriminação religiosa, o que se dá por meio de regras
como: a) é proibido diferenciar, em relação a salário ou promoções, judeus,
católicos, protestantes, islâmicos ou budistas; b) é vedado impor uma religião
ao empregado; c) é ilícito ultrajar a religião dos empregados. Agora, ter-se-ia
uma conduta positiva de assegurar que a manifestação da religiosidade não venha
a ser obstada, por meio da adaptação dos ambientes e das regras laborais à
individualidade religiosa dos integrantes de uma empresa.
É necessário também compreender o
contexto histórico dessa decisão da Corte Europeia. Segundo estatísticas
fiáveis, o Reino Unido será uma nação majoritariamente não cristã em algumas
décadas, se mantido o crescimento vegetativo da população atual. Em toda a
Europa, o processo de descristianização caminha a passos largos. Ano após ano,
o número de cristãos filiados a igrejas tradicionais é declinante, sendo a
Alemanha e a Áustria, antigos bastiões do catolicismo e do protestantismo
tradicional, dois exemplos patentes dessa realidade. O aumento da população
muçulmana, que continua a procriar, diferentemente dos europeus autóctones, é
outro elemento visível dessa transformação. De modo paradoxal, na pátria do
proselitismo cristão, que é (ou que foi) a Europa, parece que os seguidores de
Cristo é que se tornaram dignos de serem protegidos como minoria religiosa. E
note-se que a CEDH, ao decidir o caso Nadia Eweida, invocou o tratamento não
isonômico que a companhia britânica dava a pessoas de outras religiões,
admitidas a usar símbolos de sua fé, enquanto negava aos cristãos idêntica
prerrogativa. Nesse aspecto, ganha evidência o problema do “complexo de culpa
do colonizador”, que parece haver contaminado boa parte das sociedades
europeias. Essa diferenciação de tratamento é bem visível em uma notícia
publicada nos periódicos britânicos sobre a alteração do uniforme de um dos
guardas do Palácio de Buckingham, da religião sikh, para que ele usasse um
turbante e não o tradicional chapéu “pele de urso” — cliqueaqui para ler. Um
gesto belíssimo, diga-se, até em respeito aos milhares de soldados sikhs que
morreram lutando pela bandeira do Império Britânico desde o século XVIII.
A Corte Europeia de Direitos
Humanos, ao julgar o caso dos crucifixos nas escolas italianas, atuou
precisamente na linha de defesa da acomodação da expressão religiosa, mas
levando em conta os elementos culturais.[4] E, embora não o tenha afirmado
explicitamente, deixou claro o reconhecimento desse novo “status” do
cristianismo como “futura” minoria religiosa.
Essa decisão pode ter impacto na
realidade jurídica brasileira, ao prestigiar o princípio da não discriminação
indireta. A liberdade religiosa é uma decorrência da autodeterminação (artigo
4º, inciso III, CF/1988). Como já dito alhures, “no plano subjetivo, a
autodeterminação refere-se às escolhas pessoais de caráter fundamental. O plano
da autodeterminação estaria no poder de cada indivíduo de gerir livremente a
sua esfera de interesses, orientando a sua vida de acordo com as suas
preferências”.[5]
Desse modo, a liberdade religiosa
é também uma exteriorização do pluralismo, que se radica em aceitar “a
desigualdade de ser, agir, pensar e crer, no que se une à ideia de
autodeterminação.[6] O pluralismo exalça-se no plano da defesa estatal dessa
diferença entre os sujeitos. O Estado contemporâneo não apenas deve aceitar o
pluralismo, em sua feição religiosa, como deve assegurar sua livre expressão e
impedir quaisquer atos de caráter persecutório ou de favorecimento a tais ou
quais crenças”.[7]
A não discriminação indireta,
levada a níveis impensáveis para os padrões europeus no acórdão da CEDH,
eventualmente pode ser utilizada em argumentações ligadas ao direito dos
adventistas do sétimo dia — no caso atualmente examinado pelo Supremo Tribunal
Federal, relativo aos concursos públicos. A grande objeção a essa acomodação
dos ambientes e das normas à manifestação religiosa individual está no custo
dessas adaptações e na necessidade de se preservar o caráter igualitário da
sociedade (e do ordenamento), com a abertura de exceções em nome da religião.
Esse argumento foi o cerne da defesa da companhia aérea britânica e de alguns
tribunais domésticos que julgaram o caso de Nadia Eweida. A ruína dessa tese
ocorreu pelo caráter discriminatório em face de outras religiões.
A Europa possui outra “via” para
o tratamento da autodeterminação religiosa, que é o modelo francês. A ruptura
com o cristianismo ocorreu de maneira tragicamente violenta com a Revolução de
1789, que tentou até mesmo criar uma nova “religião laica”, com a figura do Ser
Supremo. Derrotados os princípios revolucionários em 1815, com a vitória
anglo-prussiana sobre Napoleão Bonaparte em Waterloo, eles renasceram com a
Revolução de 1848 e, outra vez, após a queda de Napoleão III, derrotado pelos
prussianos sob a liderança de Bismarck. Desde então, a República Francesa é
visceralmente laica e, em alguns momentos, anticlerical. O laicismo francês
hoje se depara com o crescimento da religião islâmica dentro de suas fronteiras
e a invocação do direito de se conservarem símbolos — como o véu e a burca — e
práticas religiosas em detrimento das normas em vigor nos estabelecimentos
educacionais e nos ambientes públicos. A Turquia, que se converteu na primeira
nação islâmica do mundo contemporâneo com uma constituição totalmente laica,
está lentamente abandonando esse legado de seu fundador moderno, Mustafá Kemal,
o Ataturk.
A outra via é a norte-americana,
que desenvolveu o princípio da não discriminação religiosa indireta em toda sua
plenitude. A teoria das objeções de consciência e a cláusula da liberdade
religiosa devem (e muito) à Constituição, às decisões e à doutrina
constitucional dos Estados Unidos. Nesse aspecto, é de ser creditada a forte
influência da origem cristã não conformista dos “pais fundadores” daquela nação
da América do Norte.
O Brasil, em breve, deverá ser
chamado a tomar uma posição sobre qual será seu modelo. A retirada de
crucifixos, a supressão da referência a Deus nas cédulas de dinheiro e algumas
objeções de consciência são temas que passaram a ter destaque social sem
precedentes. Um caminho muito interessante para a solução dessas controvérsias
seria a elaboração de normas legais específicas. O Congresso Nacional ganharia
muito com isso e o Poder Judiciário deixaria de arcar com mais esse ônus
advindo da omissão parlamentar.
________________________________________
[1] Disponível em
http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/london/6052608.stm. Acesso em
15.1.2013.
[2] Disponível em:
http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra-press/pages/search.aspx?i=003-4221189-5014359#{"itemid":["003-4221189-5014359"]}.
Acesso em 15.1.2013.
[3] Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/news/uk-21025332. Acesso em 15.1.2013.
[4] Disponível em:
[5] RODRIGUES JUNIOR, Otavio
Luiz. Art. 5o, incisos IV ao IX. In. MIRANDA, Jorge; BONAVIDES, Paulo; AGRA,
Walber Moura; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz (Orgs). Comentários à Constituição
Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 100.
[6] Sobre a liberdade religiosa
no Brasil e sua evolução histórica: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A
liberdade religiosa nas constituições do Brasil. Revista de Direito
Constitucional e Internacional, São Paulo: RT, v.9, nº 34, p. 155-167,
jan./mar. de 2001.
[7] [7] RODRIGUES JUNIOR, Otavio
Luiz. Op. cit., loc. cit.
Texto escrito por Otavio Luiz
Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e
doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de
la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana
de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Fonte: Conjur
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