A Polícia Federal tem impedido a entrada de haitianos na ponte da Brasileia, no Acre, e em Tabatinga, no Amazonas, a reescrever mais um capítulo da tragédia universal dos refugiados, agora em nossas portas. De forma legal, já recepcionamos grande contingente deles, o que não justifica oanunciado uso de mediadas draconianas, com os rigores da lei, para evitar que venham muitos mais. Usa-se o simplismo ingênuo, de cara anglo-saxã, de proibir, vigiar e punir, na convicção de que em migrações indesejáveis basta fechar-se a porta, a ponte, o porto, para que tudo esteja resolvido.
Os haitianos são sobreviventes de inúmeras tragédias, algumas naturais, como terremotos e tempestades. Outras humanas, como o processohistórico trágico de que são vítimas, com sucessivos surtos de exploração e desgoverno, a gerar hordas errantes, em busca de nova vida e de novoshorizontes. Como metáfora, o Haiti é a nossa África e não podemos fazer dela o que os europeus fazem com seus extracomunitários, estigmatizadosaté pela expressão infeliz que inventaram.
Se os haitianos querem vir para o Brasil, nada impedirá que o façam, com ou sem polícia. Por um lado, imigrantes clandestinos são obstinados ecorajosos para desafiar as leis; por outro, podem constituir força de trabalho inigual, como o Brasil hoje necessita, em tantas novas áreas dedesenvolvimento, carentes de empenho e de disposição. O Canadá, que está na moda, recebe mais de 250 mil imigrantes por ano, em política inteligente e de benéficos resultados para toda a sociedade.
Aqui, no caso dos haitianos, vê-se desde logo imenso campo de trabalho potencial, como no setor de hotelaria primitiva de que dispomos, a beneficiar-se com o aporte maciço de trabalhadores dispostos e hábeis em línguas internacionais. A construção civil, os grandes projetos hidrelétricos, a cultura açucareira, entre outros, são setores que poderiam capitalizar o elã desses trabalhadores, sem prejudicar a mão de obra nacional.
Soluções legais para a avalanche de imigrantes que se prenuncia são difíceis à luz do Novo Estatuto do Estrangeiro, a Lei 6.815, de 19 de agosto de1980, que, apesar do nome, já é legislação obsoleta e ultrapassada. A falta de respostas fáceis, no entanto, não representa obstáculo à capacidadecriadora do Ministério da Justiça, em particular do secretário executivo, Luis Paulo Barreto, reconhecida autoridade em temas de direito internacional edo direito do estrangeiro.
Talvez em primeiro momento fosse desejável conceder visto temporário de trabalho ou algo de natureza emergencial, apenas para acomodar juriricamente a gravidade da situação. Depois, seria essencial o engajamento da sociedade civil, em grande campanha nacional, para reunirem-seesforços na recepção ordenada dos tantos infelizes que nos vêm procurar.
O Sebrae, os sindicatos, as delegacias regionais do trabalho, os clubes de serviço, as associações comerciais, entre tantas outras instituições, seriamessenciais na condução de programas abrangentes de treinamento e de incorporação de haitianos a nosso mercado de trabalho. O Brasil, que dá lições ao mundo com sua atuação na Minustah (Mission des Nations Unies pour la stabilisation en Haiti), poderia agora dar outro exemplo dignificante, a exercer na prática a vocação generosa do povo.
Se no passado o Brasil é em certa medida a história de imigrações desordenadas e caóticas que ocasionaram aflições e heroísmos desmedidos, nopresente, razões e motivações não nos faltam para bem acolher estrangeiros. Afinal, eles são apenas como muitos de nossos ancestrais que um dia também quiseram ser brasileiros.
Por fim, se assim o fizermos, demonstraremos que nossa Constituição não é apenas um amontoado de letras frias na defesa de direitos humanos e devalores humanitários abstratos. Superaremos assim a retórica para passar a ação, com atos de governo e com engajamento cívico e social, na contundência inequívoca das decisões de Estado.
Fonte: Clipping
Excelente texto, Daniela. Estamos juntos. Omar Ribeiro Thomaz
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