segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Para além da ‘Tolerância 0’: a Indústria do Sexo no Haiti desde a Missão de Paz

Desde a implementação da MONUC (Missão das Nações Unidas para a República Democrática do Congo), surgiu dentro das Nações Unidas uma preocupação com respeito a casos de abuso sexual perpetrados por capacetes-azuis nas operações de manutenção de paz da Organização. Nesse caso específico, sabe-se que, pelo menos 200 civis foram estupradas por soldados da ONU, além de milhares de vítimas violentadas por gangues em conflito na região.  Como resposta a um quadro que não deveria se repetir jamais e impulsionado pelas demandas de feministas de órgãos das Nações Unidas, o então Secretário Geral da ONU Koffi Annan desenvolveu uma política conhecida como ‘Tolerância 0’, que estabelecia toques de recolher para as tropas e proíbia contatos afetivos entre soldados e residentes locais, visando, dessa maneira, acabaria com práticas como assédios sexuais, abusos de menores e prostituição.
Em 2011, a denúncia de que soldados uruguaios haviam estuprado um adolescente haitiano foi um grande fator de revolta em meio a população local. O crime foi devidamente punido, apesar de levantar questões sobre quantos  outros como esse não haveriam ocorrido no país ao longo de todos esses anos. Entretanto, casos individuais como esse muitas vezes desviam a atenção de problemas mais sistêmicos, que não podem ser combatidos pela política de ‘Tolerância 0’. Assim, pouca atenção tem se dado ao papel estrutural da Organizaçao nas economias locais desses países: especialmente o florescimento de indústrias de entretenimento, que incluem a indústria do sexo, após a chegada das missões de paz. Tal tendência se verificou em Estados como Libéria, Kosovo e, mais recentemente, no Haiti, onde Pourt-au-Prince se tornou para a elite local e os milhares de atores internacionais um grande point de prostituição, além de destino de mulheres traficadas desde países vizinhos como a República Dominicana. JENNINGS, Kathleen M; RISTANOVIC, Vesna Nikolić. UN Peacekeeping Economies and Local Sex Industries: Connections and Implications. Disponível em: [http://www.microconflict.eu/publications/RWP17_KJ_VNR.pdf] Acesso em: 01/11 /2011
Não se argumenta nesse caso que os soldados à cargo da ONU sejam os principais usuários desses serviços, o que parece, devido à rigidez das normas que regulam seu comportamento, pouco provável. Entretanto, análises mostram que a precariedade da vida da população local aliada à presença de um número cresente de agentes internacionais, geralmente de alta renda, tende a estimular o florescimento de atividades relacionadas à indústria do sexo. Esses agentes, nesse caso, incluem contingentes civis e militares da ONU, ONGs (cerca de 9000 no Haiti), outras forças militares tercerizadas, organizações internacionais em geral, elites locais, incluindo aquelas envolvidas nas operações e, no caso haitiano, também todo tipo de empresa e trabalhadores comprometidos com a reconstrução do país após o terremoto.
Após a saída da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH) que vem sendo anunciada nos últimos meses, poder-se-ia argumentar que essa ‘indústria do entretenimento’ tende a diminuir como resultado da retirada das tropas e dos atores internacionais envolvidos. No entanto, esse não é o fenômeno verificado em outras economias pós-missões de paz, tais como Kosovo. O que ocorre é que a população local, marcada por esse primeiro período e sem perspectivas de encontrar fonte de renda formal tende a ficar dependente de atividades lícitas e ilícitas subvalorizadas. O crime organizado, assim, não só deve perpetuar-se como, no caso da indústria do sexo, gerar divisões de gênero mais ou menos perenes, nas quais os homens atuam como chefes das redes e as mulheres ocupam posições mais baixas. No Haiti, essa situação é ainda estimulada pelas altas taxas de violência contra a mulher, que não só mostram a baixa capacidade de punição por parte do Estado, como revelam as desigualdades de gênero encrustadas na cultura local, tanto pelas classes baixas como altas, e que, com a missão de paz, tendem a ser naturalizadas pelos estrangeiros.
Com isso, procura-se demonstrar que a política de ‘Tolerância 0’ da ONU, embora crucial quanto ao aspecto individual, como no caso do adolescente haitiano, não é suficiente para tratar o problema estrutural da indústria de sexo que surge com a chegada de uma operação de manutenção de paz em um país. Essa contradição tem a ver com um problema mais geral das missões que, ainda que sejam consideradas de segunda geração e, portanto, preocupadas também com a consolidação do Estado Nacional, ainda estão sobremaneira pautadas no aspecto militar. Elas acabam, assim, por relegar a um segundo plano questões como a redistribuição de renda, geração de empregos, apoio infraestrutural ao setor rural e capacitação da população: tropas, por si só, não são capazes de responder a esses problemas. Ao contrário, o aumento puro e simples de agentes internacionais no país, aliado à precarização da vida da população local, tem efeitos indesejados, como ficou demostrado. Pode-se dizer que as operações de manutenção de paz da ONU todavia se baseiam numa noção de segurança muito restrita, estruturando-se pouco no sentido de combater com maior afinco a violência estrutural que assola essas populações.
Do lado do apoio ao setor rural, por exemplo, muito pouco foi feito para capacitar a população local. Estima-se que 77% da população muito pobre do Haiti ainda viva em áreas rurais. Embora a distribuição da terra no país, ao contrário dos alarmantes índices de distribuição de renda, seja relativamente boa, os pequenos agricultores sofrem com a falta de infraestrutura, ainda mais precária depois das catástrofes naturais ocorridas. É nessa região, entretanto, que a desigualdade de renda por gênero é mais insignificante, ao contrário das cidades, onde 27% das famílias encabeçadas por mulheres são muito pobres, em comparação com 17% de famílias encabeçadas por homens que são muito pobres. EGSET, Willy; SLETTEN, Pal. Poverty in Haiti. Disponível em: [http://www.fafo.no/pub/rapp/755/755.pdf. Acesso em: 02/11/2011].  Obviamente, uma pesquisa mais densa deveria ser feita no sentido, mas uma primeira inferência nos permitiria afirmar que a desigualdade de renda por gênero aumenta nas cidades – outro fator de estímulo para a indústria da prostituição em áreas metropolitanas, como Pourt-au-Prince. Seria necessário, assim, investir no setor rural com vistas a evitar a pauperização dos camponeses e, com isso, possíveis êxodos rurais.
Conclui-se, portanto, que pensar no aspecto individual dos peacekeepers e tratar simplesmente de problemas de má conduta, reduzindo tudo a uma questão das ‘ovelhas negras’ de dentro das tropas, não é suficiente para resolver um problema mais geral que está alijado à missão de paz, qual seja o florescimento da indústria de sexo nesses países. Não basta pensar em termos de tropas para resolver essa questão, que está vinculada à pauperização da população, principalmente as mulheres, especialmente nas cidades; à péssima distribuição de renda; à uma desigualdade de gênero que é intrínseca à cultura local mas que tende a ser naturalizada pelos estrangeiros; e à presença de uma força internacional formada por agentes com alto nível de renda.Torna-se necessário também organizar um plano coerente, e não mais fundado sob as bases de inúmeros atores independentes envolvidos no processo, que seja capaz de direcionar os recursos enviados às economias de missões de paz para a construção de uma infraestrutura socioeconômica destinada à evitar a precarização do trabalho em todas as suas variações. 
Por: Nuni Vieira Jorgensen
Fonte: Mundorama

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