quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Crise evidencia as contradições da construção da União Europeia

A crise econômica e financeira que inicialmente afundou a Islândia e a Irlanda para depois enterrar Portugal, Grécia e, muito provavelmente, Itália e Espanha, já não é mais um fenômeno regional provocado pela voracidade de um grupo de especuladores. Primeiramente, a crise foi atribuída à insolvência de bancos. Agora, é a vez dos Estados europeus à beira da bancarrota por causa de um excesso de dívidas acumuladas e renegociadas que nunca foram pagas.
Dívidas que o Banco Central Europeu pretende que sejam liquidadas em três anos, obrigando os governos a imporem mais taxas e impostos às populações. Medidas que não têm nada a ver com os investimentos para fazer crescer a economia e que alimentam uma crise sistêmica que, para o professor Marcos Del Roio, “evidencia todos os problemas e as contradições da construção da própria União Europeia”.
Brasil de Fato – Depois de três anos, você está de volta à Itália para o lançamento do seu livro sobre Gramsci. Que tipo de sensação teve ao viver de perto os efeitos da crise capitalista?
Marcos Del Roio – Foi possível averiguar in loco a falência do modelo institucional e a incapacidade da classe política, seja a maioria da direita de Silvio Berlusconi, seja a oposição de centro-esquerda liderada por Pier Luigi Bersani e Antonio Di Pietro. Tratase, então, de uma incapacidade de definir um projeto político sem que o país, depois de 150 anos de unidade constitucional, continue ainda dividido em dois, entre norte e sul. Por isso tudo, eu tive a sensação de que a Itália está vivendo uma profunda decadência política, institucional, cultural e, sobretudo, do modelo econômico. Nesse contexto, o que é mais grave, a meu ver, é que a maioria dos italianos aceitou e se adaptou a viver nessa decadência.
BF – Dizem que a crise começou por um excesso especulativo na Islândia, entretanto, quem entrou em crise não foram somente os bancos, mas também os Estados europeus, cujas economias – excluindo os três grandes (Alemanha, França e Grã Bretanha) – não crescem mais e vivem a realidade da depressão. Afinal, que crise é essa que a União Europeia vive hoje?
MDR – Acredito que a crise que a Europa vive não é apenas europeia ou italiana, grega ou portuguesa. É um capítulo da crise geral que, desta vez, atingiu todo o sistema capitalista e que, neste momento, ataca em particular os países europeus. Com esta crise, evidenciam-se todos os problemas e as contradições da construção da União Europeia. O principal elemento de crise é que o bloco europeu foi criado para ter uma moeda única sem, porém, gerar um projeto de política econômica para a própria União Europeia. De fato, a contradição principal é que não há um governo europeu para fixar as regras do desenvolvimento dos Estados do bloco. Cada um governa com plena autonomia usando uma moeda comunitária que dificulta a valorização dos parâmetros econômicos de cada país. Por sua parte, o BCE [Banco Central Europeu], além de gerenciar os fundos para o desenvolvimento, não tem nenhum controle sobre as decisões financeiras dos governos europeus, de forma que quando o perigo do default aparece, logo impõe aos Estados pacotes econômicos que impedem a bancarrota, mas os empurram em direção a uma plena depressão socioeconômica.
BF – Além disso, há a contradição institucional relacionada às fronteiras, pois, até onde vai a União Europeia e até onde esse bloco multinacional pretende chegar à Europa Oriental?
MDR – Nesse contexto, o resultado mais evidente e mais forte dessa crise é que os países mais débeis da periferia europeia, localizados na região mediterrânea e, em particular, os países da nova periferia, situados na Europa Oriental – que, na prática, foram colonizados pela União Europeia a partir de 1991 – não conseguem mais crescer. Excluindo os poucos países ricos da Europa, os outros estão economicamente estagnados e à beira da depressão.
BF – Além das históricas contradições, pode-se apontar o principal fator dessa estagnação?
MDR – Será muito difícil para a União Europeia sair dessa crise porque sua economia, que não é planejada e uniforme, sofre uma grande pressão com o crescimento da China e da Índia, que praticamente produzem tudo o que era produzido nos países periféricos do bloco, oferecendo produtos a preços menores que os europeus. Isso explica porque certos ramos industriais de países como Grécia, Portugal, Itália e até Espanha estão fechando as portas, multiplicando o número dos desempregados. Por exemplo, a Itália era um campeão mundial na produção de motores elétricos para os eletrodomésticos brancos, isto é, geladeiras, máquina de lavar etc. Hoje, a maior parte desses motores e dos próprios eletrodomésticos é fabricada na Índia e na China.
MF – O cenário de crise européia evidencia cada vez mais a divisão entre os países ricos e poderosos do ponto de vista militar e os pobres que correm risco de falência. Foi o grupo dos ricos, nomeadamente Alemanha, França e Grã Bretanha, que usaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para atacar a Líbia e criar um “regime amigo” que entregará grande parte das reservas de petróleo e de gás nas mãos das transnacionais francesas e britânicas. As consequências dessa guerra podem aumentar o processo de desintegração da União Europeia?
MDR – A agressão à Líbia para destruir o governo de Muamar Kadafi foi realizada sob o pretexto de cumprir uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Na realidade, na Europa todos sabem que o verdadeiro objetivo dessa guerra foi reformular as relações de compra e venda fixadas pelo governo da Líbia. Para alcançar esse objetivo, era necessário criar um novo governo e inviabilizar a empresa estatal petrolífera do país que regulamentava os contratos petrolíferos com as multinacionais do Ocidente. A França foi a principal mentora dessa guerra que, certamente, vai acelerar a progressão interna da crise no bloco da União Europeia. De fato, não podemos esquecer que em 2009 o presidente francês, Nicolas Sarkozy, tentou criar um sub-bloco econômico regional dos países do mar Mediterrâneo, que, na realidade, era uma aliança entre França e Israel para controlar a região. Por outro lado, essa guerra de agressão terá consequências políticas e geopolíticas no seio da União Europeia. Antes de tudo, porque a Líbia empregava um milhão de trabalhadores africanos e magrebinos que, agora, com o país destruído, perderam o trabalho e a confiança de permanecerem no país; e, por isso, querem emigrar para a Europa, que não os quer. A Itália, que tinha uma grande participação na exploração petrolífera e que participou ativamente na guerra contra Kadafi , emprestando à Otan todas suas bases aéreas e navais, nem sequer foi mencionada por Barack Obama no discurso de agradecimento a todos os países que apoiaram materialmente o ataque. A Alemanha, depois dos primeiros dias de guerra, optou por ficar como observadora para não impressionar seu eleitorado, enquanto a Grã Bretanha se situou ao lado do intervencionismo francês unicamente para representar os Estados Unidos, que não queriam se envolver oficialmente em uma terceira guerra no Oriente Médio. Na realidade, esta guerra – ainda não concluída – evidenciou a existência de contradições interimperialistas dentro da União Europeia, e entre o bloco europeu e os Estados Unidos, no que diz respeito ao futuro geopolítico do continente africano e, em particular, da região mediterrânea da África do Norte.
BF – A Líbia foi conquistada pela Otan depois das rebeliões populares na Tunísia e no Egito. Na primeira, o drama da crise econômica e o desemprego massivo continuam, enquanto no Egito o exército, quando a revolução começou a ganhar uma tonalidade de esquerda, logo mostrou a cara de guardião da ordem capitalista. Você acredita que a Primavera Árabe pode alcançar níveis de ruptura revolucionária ou tudo vai ficar tal como está hoje?
MDR – Essa Primavera Árabe ou Revolução Árabe que se iniciou em vários países com uma rebelião popular de conteúdo bastante genérico contribui, bastante, para confundir a análise desses fenômenos. Diferentemente do que a mídia disse, trata-se de fenômenos políticos muitos distintos que ocorreram concomitantemente, mas com desdobramentos ainda indefinidos. A Tunísia, que foi o primeiro a promover a revolução democrática expulsando o presidente- ditador Ben Ali, silenciou as demandas populares no parlamento, cujo sistema político é muito próximo do modelo europeu, com partidos de direita e reformistas e muitos sindicatos bem estruturados. Eles circunscreveram a disputa política nos corredores do parlamento. No Egito, houve de fato uma aliança secreta entre o exército e a Irmandade Muçulmana não só para expulsar do poder o velho presidente Hosni Mubarak e seu clã, mas também para evitar que a rebelião popular se transformasse em revolução contra o sistema. Nesse âmbito, prevaleceu a aliança estratégica com os Estados Unidos e, consequentemente, o exército foi restabelecer a ordem nas ruas do Cairo, reprimindo como nos velhos tempos de Mubarak. É claro que essa situação está aproximando o governo militar do Egito com o islâmico da Turquia, criando, assim, um outro quadro político, que é ruim em termos de política interna, porém, pela primeira vez, é muito perigoso para Israel. Um quadro político que rejeita os acordos de Mubarak, que havia garantido a Israel uma série de benefícios econômicos e geoestratégicos que, agora, todo mundo quer rediscutir. Mais complexa é a situação que se vive no Iêmen, que, por sua vez, é totalmente diferente do que está ocorrendo na Síria, onde os EUA querem a todo custo a renúncia do presidente Bashar al-Assad, enquanto, apesar dos mortos e da repressão, quase nada dizem sobre o futuro do Iêmen. Portanto, a Primavera Árabe continua uma incógnita em função dos desdobramentos políticos que podem acontecer, simultaneamente ou não, em cada país.
Marcos Del Roio é professor titular de Ciências Políticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp). É mestre em Ciência Política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutor na mesma disciplina na Universidade de São Paulo (USP). É presidente do Instituto Astrogildo Pereira e desenvolve pesquisas sobre teoria política do socialismo e política operária. Possui livros, capítulos de livros e artigos publicados sobre o movimento operário no Brasil, marxismo brasileiro e autores clássicos do marxismo, em particular, Gramsci.

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