segunda-feira, 19 de setembro de 2011

História do Mercosul: origens e desenvolvimento



O Mercosul – Mercado Comum do Sul – foi criado em 1991 para constituir-se como um bloco comercial coeso, com pretensões a adotar o formato de um mercado comum. Na visão dos “pais fundadores”, possivelmente ele poderia evoluir para formas mais avançadas de organização econômica, política e social, até alcançar, na parte meridional da América do Sul – e teoricamente também, a termo, no conjunto da região – um status equivalente ao adquirido, paulatinamente, pela Comunidade (hoje União) Europeia; ou seja: um espaço econômico plenamente integrado, com total liberdade para o deslocamento de fatores produtivos, razoável coordenação econômica (o que, no caso europeu, assumiu a forma de uma moeda comum para a maioria de seus membros), seguida, subsequentemente ou simultaneamente, da harmonização e coesão dos regimes sociais e das peculiaridades nacionais e regionais, para, finalmente, alcançar a desejada concertação política e diplomática, capaz de fazer a Europa ocidental recuperar sua antiga importância internacional, o que implicaria lograr uma expressão comum no plano externo (defesa, segurança, política externa, negociações multilaterais).
Mesmo considerando-se apenas a fase inicial de integração econômica – qual seja, a constituição de uma zona de livre comércio, seguida da definição técnica de uma tarifa externa comum, o que redundaria numa união aduaneira – e seu desdobramento lógico na criação de um mercado comum (aliás, determinado “constitucionalmente”), pode-se dizer que tais objetivos – que já eram os do processo bilateral de cooperação e de integração, iniciado em 1986 por Brasil e Argentina – não foram alcançados. Com efeito, deve-se reconhecer que, passados vinte anos de experimentos integracionistas, o Mercosul não conseguiu cumprir as metas estabelecidas no Tratado de Assunção (TA), nem parece perto de realizá-las no futuro previsível. Ao longo dessas duas décadas, mas bem mais enfaticamente no curso da última década, o Mercosul parece ter se afastado de seus objetivos comercialistas e econômicos iniciais, aliás consagrados no tratado constitutivo, para converter-se num agrupamento político dotado de interesses muito diversificados.
Teria falhado, então, o Mercosul? Absolutamente: as falhas e insuficiências do processo podem ser debitadas inteiramente aos países membros, que parecem ter abandonado – ao menos os seus dois membros economicamente relevantes, Brasil e Argentina – o objetivo fixado no TA, de um mercado comum regional, para contentar-se com a liberalização parcial do comércio recíproco e fixar-se no desenvolvimento da cooperação política e social, sem um conteúdo econômico mais afirmado. Tampouco se pode dizer que o bloco foi afetado por um suposto “déficit democrático”, ou por deficiências institucionais em seu arcabouço jurídico, sendo, ao contrário, bem mais evidentes as inadimplências nacionais em implementar decisões e resoluções conjuntas, bem como a divergência de intenções políticas entre os países membros quanto aos objetivos mediatos e imediatos a serem perseguidos. A despeito da retórica presidencial sempre afirmada quanto à unidade de vistas entre os membros, não se pode dizer, de fato, que os objetivos nacionais quanto à utilidade ou funcionalidade do Mercosul para cada uma das economias e sociedades sejam realmente convergentes.
As dificuldades para a consolidação ou avanço do Mercosul podem ser creditadas a dois fatores de amplo escopo: de um lado, instabilidades conjunturais no plano econômico (em diferentes formatos segundo os países), com planos parciais ou insuficientes de ajustes; de outro, o recuo conceitual dos projetos de construção de um espaço econômico integrado na região, com abandono relativo da liberalização comercial recíproca e ênfase subsequente nos aspectos puramente políticos ou sociais da “integração”.  Quaisquer que sejam os pesos relativos desses dois conjuntos de fatores e seus efeitos concretos sobre as intenções proclamadas e as ações efetivas dos países membros do Mercosul – e os impactos variam muito em função dos países envolvidos – cabe reconhecer o abandono (não reconhecido) do projeto original de se caminhar para instituições orgânicas mais consentâneas com o formato de um mercado comum, em favor de instâncias seletivas de cooperação política setorial que vêm moldando um novo perfil para o Mercosul, até seu envolvimento num conjunto de áreas não delineadas no mandato econômico-comercial do tratado fundacional.

Por: Paulo Roberto de Almeida


Mercosul: origens de um bloco comercial
O processo de constituição progressiva de um espaço econômico integrado no Cone Sul – o que não deve ser identificado necessariamente com um projeto de mercado comum ou com o Mercosul atual – tem de ser visto no contexto dos movimentos de redemocratização e de reorganização econômica nos países da região, numa fase em que o multilateralismo comercial parecia ceder espaços progressivamente mais amplos para o regionalismo, ou seja, a constituição de blocos comerciais discriminatórios. Projetos de cooperação e de integração emergiram naturalmente na agenda dos países tão pronto foram liberados de seus respectivos regimes militares; foi igualmente natural que as duas maiores economias regionais se engajassem no processo, entre as quais eram mais intensos, historicamente, os fluxos de comércio e de intercâmbios econômicos de diversos tipos. Argentina e Brasil deram partida, conduziram politicamente o exercício e continuam determinando, em todas as circunstâncias, os traços fundamentais do processo de integração no Cone Sul, pelo seu formato institucional, pela sua estrutura operacional e pelo conteúdo econômico imprimido ao bloco ao longo de suas diversas fases.
Depois de uma fase bilateral, durante a qual foram definidos os objetivos essenciais do processo – primeiro a cooperação e a complementação econômica, no Programa de Integração e Cooperação (1986), depois o projeto de um mercado comum bilateral, pelo Tratado de Integração (1988) – passou-se à etapa quadrilateral, quando se decidiu estender o mercado comum aos dois outros vizinhos, sendo então adotado o Tratado de Assunção para a criação de um mercado comum (1991). A historiografia corrente sobre o Mercosul não reconhece, porém, a mudança fundamental que representou a passagem do modelo de complementaridade gradualista encarnado nos dois primeiros instrumentos (e seus diversos protocolos setoriais) para um modelo econômico liberal e livre-cambista representado pelo TA. Entre as duas fases, pouca atenção se dá à Ata de Buenos Aires (julho de 1990) que modificou substancialmente a metodologia e a própria cronologia da constituição de um mercado comum bilateral Brasil-Argentina.
A Ata representou a passagem de um esquema dirigista e industrializante, como seguido até então, para outro de cunho mais comercialista e liberalizante, mediante a criação calendarizada de um mercado comum (mais exatamente em 01/01/1995), ademais de estabelecer mecanismos automáticos de desgravação comercial bilateral. A rebaixa tarifária foi operada a partir de uma redução inicial da metade das alíquotas normalmente aplicadas e à razão de 7% a cada semestre, até chegar a 100% de preferência – ou “tarifa zero” – ao final do período de transição, em 31 de dezembro de 1994, quando também deveriam estar definidas uma Tarifa Externa Comum (TEC) e as instituições permanentes do Mercosul.
O TA, para ser mais preciso, é praticamente uma cópia ipsis litteris – com os ajustes quadrilaterais que se impunham – da Ata de Buenos Aires, como é possível de ser facilmente comprovado, mediante uma comparação visual de ambos os textos. O relevante a ser destacado é a mudança de filosofia entre o Mercosul bilateral pré-1990 e o Mercosul quadrilateral pós-1991, ainda que, para todos os efeitos práticos, o aprofundamento do processo de integração regional não tenha caminhado em direção dos objetivos fixados nesses dois instrumentos: um mercado comum com liberalização comercial plena e coordenação das políticas macroeconômicas e setoriais.
Desenvolvimento do Mercosul
A estrutura intergovernamental definida desde a fase bilateral, e mantida no formato quadrilateral, representou, para Brasil e Argentina, a preservação de suas capacidades nacionais em determinar políticas autônomas – traço característico de um entranhado soberanismo jurídico, tradicional na região – e sua opção preferencial por um modelo de tipo Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo, 1948), ou seja, de uma união aduaneira completa, em lugar do salto comunitário que estaria implicado numa eventual adoção de um modelo europeu de mercado comum unificado. O processo decisório, obviamente consensual na fase bilateral, continuou dominado pela ausência de proporcionalidade, com o que se atribui a países menores (como Paraguai e Uruguai) o poder de veto sobre decisões que afetariam, teoricamente, economias grandes e sociedades de dezenas de milhões de habitantes, a começar pelo próprio Brasil.
Independentemente da adequação funcional (ou não) da estrutura institucional intergovernamental do TA aos objetivos de um mercado comum, deve-se reconhecer o dinamismo comercial e os avanços iniciais do Mercosul, no sentido do crescimento dos vínculos recíprocos e o aumento geométrico do comércio, tanto para dentro como para fora do bloco. Boa parte desse crescimento nos fluxos comerciais, se deve, obviamente, à redução de tarifas e à eliminação de barreiras para ou não-tarifárias, o que representaria bem mais um desvio de comércio do que criação de novas correntes de intercâmbio. Mas também ocorreu criação do comércio, para dentro e para fora, na medida em que, tanto em função de reformas tarifárias conduzidas  nacionalmente pelos países membros, quanto em preparação da definição e implementação da TEC, as alíquotas aduaneiras foram se reduzindo paulatinamente, o que abriu espaço para a ampliação das trocas em diversas dimensões.
Uma das primeiras medidas abrangentes do período de transição foi a adoção de um calendário quase completo de tarefas a serem implementadas para cumprir, segundo um esquema gradual e cumulativo, com as tarefas e requisitos envolvidos na realização da zona de livre-comércio, da união aduaneira, até se alcançar o mercado comum previsto (esta foi a função do chamado Cronograma de Las Leñas, aprovado em 1992). Não obstante um seguimento detalhado pelas burocracias nacionais, o cronograma só pode ser implementado parcial e imperfeitamente, já que a amplitude dos requisitos necessários ao acabamento dos objetivos principais superava em muito a capacidade dos governos de empreenderem o conjunto de tarefas associadas a cada um deles.
Não obstante o não acabamento das metas vinculadas ao mercado comum, foi possível alcançar certo grau de consenso para a implementação da zona de livre comércio – adotada com algumas exceções, entre elas o açúcar e a indústria automotiva – bem como para a criação – ainda que com muitas imperfeições – da união aduaneira. Quaisquer que tenham sido as imperfeições da fase de transição no acabamento das tarefas indispensáveis ao atendimento dos objetivos do artigo 1o. do TA, esta era de bastante otimismo, tanto do lado comercial, quanto do lado político. Foi nesse clima de quase euforia que se chegou a Ouro Preto, em dezembro de 1994, não para a assinatura de um novo tratado, que poderia ter sido o da criação efetiva de um mercado comum – com todos os requisitos do gênero – ou pelo menos o de uma união aduaneira acabada, mas de um simples protocolo, que confirmou todos os mecanismos e instituições existentes, com alguns poucos acréscimos (como o de uma Comissão de Comércio) que não modificaram fundamentalmente a natureza do processo de integração no Mercosul.
O Protocolo de Ouro Preto concedeu, alegadamente, “personalidade de direito internacional” ao Mercosul, o que o teria habilitado a negociar conjuntamente acordos comerciais com parceiros individuais, na região ou fora dela, ou com outros blocos. Foi o caso, imediatamente após, do início do projeto americano de uma Zona de Livre Comércio nas Américas, a Alca, e, logo em seguida, das negociações bi-regionais com vistas a formar uma associação comercial com a União Europeia (ambas se arrastando pelos dez anos à frente, até sua paralisia virtual, em meados da década seguinte). 
Crise no Mercosul: natureza e consequências
A segunda metade dos anos 1990 ainda viu o crescimento do comércio do bloco e para o bloco. Mas este já estava imerso em graves desequilíbrios conjunturais, embora de natureza diversa, segundo os países. A Argentina tinha encontrado a estabilização monetária por meio de um plano de conversibilidade – na verdade, a rigidez absoluta na paridade fixa com o dólar – mas não reencontrou o caminho da competitividade internacional, acumulando déficits que foram sendo artificialmente reprimidos pelo recrudescimento do protecionismo ou cobertos pelo recurso excessivo a empréstimos externos, até o desenlace fatal, alguns anos mais tarde. Desde 1996, a Argentina introduzia medidas restritivas das importações, inclusive no comércio  bilateral com o Brasil, que era, aliás, o único país que lhe facultava superávits substantivos, geralmente feitos de comércio administrado (petróleo, trigo e automóveis). Mas o Brasil também acusava desequilíbrios crescentes nas transações correntes, contornados por tentativas de controle do financiamento externo às importações ou por igual apelo a capitais externos.
As dificuldades comerciais e de balanço de pagamentos dos países membros, em especial nas relações bilaterais dos dois grandes e entre eles e terceiros países, levou naturalmente ao crescimento dos conflitos, com medidas abusivas de antidumping e de salvaguardas aplicadas de maneira puramente protecionista. Em vista da insuficiência dos mecanismos de solução de controvérsias existentes no bloco – o Protocolo de Brasília tinha sido aprovado em 1991 para funcionar apenas durante o período de transição – e da pouca disposição dos países membros em acatar laudos arbitrais não dotados de um poder direto de sanção, ocorreram, inclusive, casos de transposição de reclamações comerciais do âmbito do Mercosul para o sistema de solução de controvérsias da OMC (o que ocorreu pelo menos uma vez, sendo o Brasil o reclamante e a Argentina a reclamada). A insatisfação com o sistema do Mercosul levou à adoção, no final da década, do Protocolo de Olivos, criando um Tribunal Permanente de Revisão, que pretendia reforçar os mecanismos de solução de disputas por meio de medidas automáticas e cautelares; sua entrada em vigor não impediu, contudo, a deterioração do comércio interno e o agravamento das tensões no bloco, com ameaças pela Argentina de dolarização completa, o que significaria a derrocada do Mercosul.
A crise final no regime econômico argentino, no entanto, só ocorreu mais de um ano depois que o Brasil enfrentou o seu próprio inferno cambial, acumulado desde a crise mexicana de 1994-95, as turbulências asiáticas de 1997, situação exacerbada pela moratória russa de julho de 1998, obrigando-o a concluir um rápido programa de socorro preventivo com o FMI e outras instituições e países, em outubro desse ano, por um valor superior a US$ 40 bilhões. O instável arranjo não suportou, entretanto, novas fugas de capitais e a ausência de ajustes internos, vindo a termo em janeiro de 1999, quando o sistema de banda cambial saltou pelos ares: a cotação do dólar disparou e o Brasil se viu obrigado a adotar um regime de flutuação cambial, complementado pouco depois por um sistema de metas de inflação.
O novo esquema permitiu o restabelecimento gradual dos equilíbrios externo e macroeconômico, não sem antes provocar sérios abalos na relação econômica com a Argentina, que logo culpou o Brasil pelos problemas que sua própria camisa de força cambial tinha criado. Ante as ameaças de dolarização completa na Argentina, o Brasil propôs, em 2000, a constituição de um grupo de trabalho sobre convergência macroeconômica, que deveria supostamente trabalhar com a harmonização de políticas e regras até chegar, eventualmente, à adoção de um mesmo regime cambial e talvez até a uma moeda comum. Dez anos depois da adoção do regime de paridade fixa, finalmente, a Argentina retrocedia em meio a uma das mais graves crises de sua história econômica, feita de retenções bancárias arbitrárias, calotes internos e de insolvência externa, que se prolongou durante anos, ao ter a Argentina imposto unilateralmente aos credores externos um enorme desconto no valor face de suas emissões globais.
No plano do Mercosul, propriamente, medidas restritivas e desvios acrescidos da TEC já tinham sido adotados vários meses antes do desenlace fatal de dezembro de 2001, tendo o ministro da economia Domingo Cavallo imposto unilateralmente ao Brasil as novas regras pelas quais a Argentina pretendia conter o comércio bilateral. As exceções nacionais e as divergências em relação à TEC se multiplicam de todos os lados, antes e depois da grave crise enfrentada pela Argentina a partir de 2001, com efeitos imediatos, sobretudo sobre o pequeno Uruguai. O comércio regional despencou imediatamente, representando, em 2002, praticamente a metade do que ele tinha sido até 1999. Mesmo se fluxos e valores foram sendo paulatinamente recompostos e elevados nos anos seguintes, diversas outras restrições operacionais e divergências normativas continuaram a vigorar, afastando ainda mais o Mercosul dos objetivos de convergência macroeconômica e de unificação dos mercados estipulados no artigo fundamental do TA.
Estagnação comercial, fuga (política) para a frente 
Para todos os efeitos práticos, a partir de 2003 o Mercosul jamais voltou a ser o que era nos primeiros oito ou nove anos de sua existência quadrilateral. Mesmo se a estagnação intermediária registrada no plano comercial foi sendo superada aos poucos, em função da retomada do crescimento na Argentina e nos demais países, a crise de 2001-2002 deixou marcas profundas no estilo de governança econômica em vigor no país platino, levando a retrocessos institucionais e ao enfraquecimento dos compromissos anteriormente assumidos com a liberalização comercial e a abertura econômica. Para tanto contribuíram a personalidade e as políticas adotadas pelo presidente argentino Nestor Kirchner (2003-2008), tanto quanto as novas orientações de política externa do governo brasileiro do presidente Lula (2003-2010), menos comprometido com as metas econômicas e comerciais do Mercosul, e bem mais propenso a aceitar novos desvios para objetivos políticos e sociais supostamente mais relevantes do ponto de vista de sua política externa regional.
Os grandes responsáveis pelas novas orientações da política externa regional do Brasil, em especial no que se refere ao Mercosul e às tentativas de sua ampliação ou extensão ao espaço regional sul-americano, foram o assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais – um militante que durante muitos anos exerceu o cargo de secretário de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores (PT) – e o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores no período 2003-2009, diplomata de carreira. Sobretudo, este último, intimamente envolvido com a construção da integração bilateral Brasil-Argentina nos anos 1980 e opositor declarado do Mercosul em sua versão liberal dos anos 1990, empenhou-se desde o início em reverter o bloco às características que este possuía na fase mercantilista e dirigista anterior à Ata de Buenos Aires e ao TA. Ele chegou, inclusive, a refazer e recolocar em vigor – como se isso fosse possível ou fosse capaz de provocar os mesmos efeitos sistêmicos, de resto não provados – as duas dezenas de protocolos setoriais que ele mesmo tinha negociado a partir do PICE de 1986, saudados como estratégicos do ponto de vista da integração desejável. Esses protocolos, sem maiores funções no novo esquema livre-cambista do Mercosul, conformavam, nessa visão, um processo de complementaridade inter e intra-setorial, segundo algumas linhas produtivas selecionadas pelo Estado como prioritárias para a integração bilateral.
O que ficou evidente, desde o início dos governos Lula e Kirchner, foi, de um lado, a orientação protecionista e defensiva das políticas econômica e comercial deste último, inclusive em detrimento da integração regional; de outro, a leniência e tolerância demonstrados pelo primeiro, e por seus principais assessores, sob pretexto de preservação do Mercosul e concessões de “espaços de liberdade” para que a Argentina pudesse conduzir com ampla latitude seu projeto de “reindustrialização”. De fato, o que ocorreu é que, em lugar de reforçar o bloco em suas dimensões econômica e comercial, as posturas combinadas da Argentina e do Brasil terminaram por fragilizar o Mercosul, no que se refere a seus objetivos essenciais. No lugar de comércio ou abertura econômica, novas dimensões foram sendo impulsionadas, sobretudo nos aspectos políticos e sociais.
Mesmo com toda a compreensão brasileira em relação às infrações protecionistas argentinas, o processo de restauração econômica naquele país foi lento e tortuoso. A presidência Kirchner pretendeu descarregar sobre o Brasil os custos dessa reconversão, propondo mecanismos de compensação automática dos desequilíbrios bilaterais que seriam acionados assim que se constatassem superávits persistentes a favor do Brasil e defasagem cambial em suposto prejuízo da Argentina. O que se pretendia, em resumo, era voltar ao mercantilismo comercial e ao dirigismo econômico, em total contradição com os pressupostos e objetivos do Mercosul, ou pelo menos do TA; em suma, seria uma permissão aberta à Argentina para discriminar seletivamente contra o Brasil, em clara violação dos compromissos do Mercosul e em desacordo com as regras do sistema multilateral de comércio.
O esquema finalmente aprovado depois de negociações difíceis entre os dois maiores membros do Mercosul, chamado eufemisticamente de Mecanismo de Adaptação Competitiva, não atendeu completamente aos pleitos argentinos, mas representou, de toda forma, uma fratura grave na arquitetura institucional do Mercosul: como os dois sócios menores não aceitaram participar de uma ferramenta claramente em contradição com os princípios do Mercosul e em total violação das regras do comércio multilateral, o novo mecanismo foi colocado ao abrigo, não do ACE-18 – que é o TA tal como protocolizado na Aladi – mas do ACE-14, que era a antiga Ata de Buenos Aires, que converteu o processo bilateral Brasil-Argentina de integração do modelo mercantilista e dirigista que exibia até então para o modelo “neoliberal”. O Mercosul adquiriu, assim, o duvidoso privilégio, inédito em blocos comerciais registrados na OMC, de reverter a esquemas bilaterais, apoiados em instrumentos supostamente superados em sua trajetória institucional.
O ativismo brasileiro e o Mercosul politizado
A administração brasileira do presidente Lula, interpretando o Mercosul através de lentes presumidamente comunitárias – em especial no tocante aos programas de reconversão setorial e de redução das desigualdades regionais existentes entre os países membros da UE – considerou que caberia ao Brasil assumir o papel da Alemanha, se apresentando, em 2004, como o provedor líquido de recursos num projeto de redução de “assimetrias estruturais” que supostamente estariam impedindo o Mercosul de se desenvolver de modo adequado. O Brasil então propôs, e os demais países aceitaram o esquema, financiar um fundo de convergência estrutural (Focem) à razão de 70%, que replica o que já está sendo feito, sem a expertise técnica, pelos organismos multilaterais e regionais de financiamento; o sistema é obviamente limitado – ainda que o Brasil tenha comprometido recursos bem mais amplos do que os US$ 70 milhões oferecidos – e não reduzirá de modo significativo as assimetrias mais importantes, que são as de política econômica, não propriamente as de natureza geográfica ou de dotação de fatores.
Pelo resto da década, não ocorreu qualquer outro progresso institucional, a não ser a adoção, quinze anos depois do prazo normal, do Código Aduaneiro do Mercosul, que deveria estar em funcionamento desde o dia 1o de janeiro de 1995; espera-se que ele possa entrar em vigor proximamente, mesmo na ausência de uma autoridade aduaneira unificada e de um regulamento que possa dispor, em bases racionais e uniformes, da renda auferida no que deveria ser um território aduaneiro único. A única outra decisão de importância, adotada desde a vigência da TEC, foi o compromisso dos Estados membros, em 2010, de cessar a dupla cobrança dos direitos aduaneiros de produtos importados a partir de alguma data no futuro próximo.
Estes são, basicamente, os mais importantes desenvolvimentos no itinerário histórico do Mercosul. Mas caberia também, referir, ainda que brevemente, à inserção do bloco no contexto sul-americano e aos processos de negociações regionais, bilaterais, hemisféricas ou multilaterais. Durante todo o período, o Mercosul tentou acordos comerciais com os demais membros da Associação Latino-Americana de Integração, sem grande sucesso, porém: uma proposta de se constituir uma Área de Livre Comércio das Américas (Alcsa), feita pelo Brasil em 1994, em resposta ao projeto americano de uma Alca, não encontrou respaldo nos demais países membros da Associação e, pelo resto da década, o Mercosul negociou relutantemente a criação da área hemisférica, exibindo uma atitude que era em geral de tergiversação, com táticas dilatórias e diversionistas. No contexto regional, apenas dois países se associaram ao Mercosul, o Chile e a Bolívia, ambos em 1996, embora num formato de liberalização comercial parcial.
A partir de 2003, acordos aladianos, dotados de muitas exceções, foram concluídos com os demais vizinhos andinos, embora com efeitos marginais sobre os fluxos totais de comércio. No mesmo período, Brasil e Argentina se empenhavam, com a ajuda da Venezuela, em sabotar as negociações da Alca, o que foi efetivamente conseguido na Cúpula das Américas de 2005, quando o processo foi implodido, como aliás orgulhosamente admitido pelo presidente e pelo chanceler do Brasil. Divergências entre Brasil e Argentina dificultaram, porém, as posições que deveriam ser comuns nas negociações multilaterais da Rodada Doha da OMC e nas bi-regionais com a União Europeia. Até 2011, nenhum desses processos tinha alcançado conclusões satisfatórias.
Síntese: o que foi, o que é o Mercosul
O quadro abaixo apresenta um resumo conceitual sobre as principais características do itinerário do Mercosul em suas diferentes fases, tanto no plano econômico quanto no político e no das relações externas do bloco, podendo ser considerado uma síntese do desenvolvimento do bloco desde sua criação à atualidade.
Mercosul: as diferentes fases

1986-1989
1990-1994
1995-1999
1999-2002
2003-2010
Traços dominantes da fase
Etapa fundadora; construção gradual
Ata de Buenos Aires
Tratado de Assunção
Protocolo de Ouro Preto: confirmação de metas
Crise de confiança
Recuo geral
Prioridades políticas; um fim em si mesmo?
Ênfase geral do período
Protocolos setoriais bilaterais (Br.-Arg.)
Zona de Livre Comércio Automática
Completar a União Aduaneira (alinhar TEC)
Superar o impacto da crise econômica
Instituições políticas e sociais; retórica
Relações comerciais
Administrado e protocolos setoriais flexíveis
Crescimento para dentro e expansão para fora
Crescimento lento; desequilíbrios e resistências
Diminuição geral dos níveis alcançados
Aumento de restrições internas (ilegais)
Relações políticas
Equilíbrio absoluto entre Br.-Arg.; bom entendimento
Instituições provisórias interestatais; ativismo
Estabilidade das instâncias diretivas; burocracias
Crise de confiança Br.-Arg.: câmbio desalinhado
Dificuldades nas relações Br.-Arg.: tolerância Br.
Moldura jurídica e
instituições
Puramente bilaterais; Tratado de Integração
Provisórias; dúvidas sobre o perfil interestatal
Apresentação à OMC: lacunas na TEC
Maquiagem via novos grupos de trabalho
Fuga para a frente: foros; sociais e Parlamento
Avanços e realizações
Construção de confiança mútua bilateral
Definição da Tarifa Externa Comum
Associações ao bloco: Chile e Bolívia
Evitou-se o desmanche; arranjos temporários
Busca de acordos regionais e extra-região
Problemas e conflitos
Baixo grau de liberalização comercial; dirigismo
Dificuldades na convergência de políticas
Aumento dos conflitos comerciais; controvérsias
Necessidade de novo instrumento jurídico
Baixo cumprimento das normas internas
Desafios  para novos avanços
Superar as resistências setoriais; demandas por proteção
Definir perfil institucional: supranacional ou interestatal (papel Brasil)
Consolidar a UA para poder avançar ao mercado comum
Preservar o bloco e a confiança econômica externa
Retomar os fundamentos do bloco: comércio, investimentos
Concepção e elaboração: Paulo Roberto de Almeida (2010-2011)
Se algumas linhas de ruptura podem ser traçadas entre essas diferentes fases, elas provavelmente se situariam em torno da virada do milênio, de 1999 a 2001, quando o Mercosul enfrenta a grave crise econômica do Brasil e da Argentina, e, novamente, a partir de 2003, quando sua orientação geral sofre profunda inflexão, como exemplificado no quadro analítico seguinte, que evidencia, por sua vez, as concepções gerais que presidiram à sua “filosofia” de organização e desenvolvimento ao longo do tempo.
Mercosul: Concepções gerais em cada fase
1986-1989
1990-1994
1995-1999
1999-2002
2003-2010
Dirigismo; intervencionismo estatal; cepalianismo
Neoliberalismo; livre-comércio; Consenso de Washington
Liberalismo temperado pelas crises econômicas
Revisão geral de paradigmas; mecanismos de ajuste ad hoc
Forte papel do Estado; ensaio de correção de assimetrias
Concepção e elaboração: Paulo Roberto de Almeida (2010-2011)


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