Depois de autorizar em 2016 que réus condenados em segunda
instância fossem presos, o Supremo Tribunal Federal (STF) pode rever essa
decisão em julgamento iniciado nesta quinta-feira. Se isso acontecer, o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e alguns milhares de outros presos no
Brasil podem vir a ser soltos.
Na primeira sessão, a corte ouviu advogados que apresentaram
os argumentos contrário e favoráveis à prisão antecipada. O julgamento será
retomada na quarta e pode se estender por alguns dias.
Como os ministros Dias Toffoli, atual presidente da corte, e
Gilmar Mendes indicaram ter mudado de posição, a expectativa é que agora o STF
volte a autorizar o cumprimento da pena apenas depois do fim do processo
(quando todos os recursos se esgotam), ou adote uma posição intermediária,
permitindo a prisão após condenação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ),
terceira instância. Lula já foi condenado no STJ, mas ainda tem recursos
pendentes no tribunal.
Para os contrários à possibilidade de prisão antecipada, a
Constituição é clara ao estabelecer que ninguém pode ser considerado culpado
antes da conclusão do processo. Já os favoráveis dizem que o sistema brasileiro
oferece recursos demais aos réus, prolongando processos demasiadamente e
favorecendo a impunidade. Eles dizem que o Brasil seria um ponto fora da curva,
já que a maioria dos países permitiria a prisão após decisão em segunda instância.
O argumento foi citado pelo falecido ministro Teori
Zavascki, no voto vencedor em 2016, que citou a legislação de nações como
Estados Unidos, França, Alemanha e Portugal. Já o ministro Celso de Mello
rebateu, na ocasião, dizendo ser inadequada tal comparação, já que esses países
não trariam, como a Constituição brasileira, uma previsão expressa de que o réu
deve ser considerado inocente até que o processo transite em julgado, ou seja,
que se esgotem os recursos em todas as instâncias.
A BBC Brasil ouviu juristas brasileiros e estrangeiros para
entender como se dá a prisão em outros países, após a condenação em segunda
instância. A apuração indica que de fato o cumprimento da pena, em geral,
ocorre antes do esgotamento dos recursos em diversos países. Há casos, porém,
de sistemas similares ao brasileiro.
Alguns dos entrevistados fizeram a ressalva de que comparar
sistemas penais é algo complexo e, algumas vezes, indevido, já que as premissas
legais podem diferir muito entre os países.
Confira a seguir como o cumprimento da pena funciona em
outros países.
Nos EUA, maioria dos réus faz acordo e abre mão de recursos
Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 90% das pessoas
processadas criminalmente vão presas já na primeira instância, mas não porque
foram condenadas, e sim porque aceitaram acordo para se declararem culpadas,
explica à BBC Brasil James B. Jacobs, professor de direito penal na NYU
(Universidade de Nova York). Com isso, abrem mão de recursos.
Já os condenados em primeira instância, em geral, aguardam
presos pelo julgamento em instâncias superiores. "Podem solicitar
suspensão da sentença enquanto seu recurso é julgado, mas raramente isso é
atendido", ressaltou.
Isso ocorre porque lá esses julgamentos são sempre feitos
com júri popular, enquanto no Brasil isso acontece apenas para crimes
intencionais contra a vida.
O modelo é sujeito a críticas. O juiz federal e professor da
Universidade de Columbia Jed Rakoff, por exemplo, diz em artigo sobre o tema
que o sistema americano tem penas altas e dá poder desproporcional à acusação
em relação aos defensores. Com isso, pessoas inocentes acabam aceitando se
declarar culpadas por temer julgamentos longos que podem acabar em graves
condenações.
O problema se agrava pelo fato de que muitos não respondem
ao processo em liberdade. Os EUA têm 490 mil presos provisórios, o que o coloca
como quarto país do mundo que mais mantém pessoas detidas sem condenação em
proporção a sua população, segundo estudo da Open Society Foundation. Já o
Brasil aparece em 11º nesse ranking, com cerca de 220 mil presos provisórios
(40% do total de detidos no país).
O jovem negro nova-iorquino Kalief Browder virou símbolo
desse problema nos EUA – acusado de roubo, se recusou a aceitar se declarar
culpado e pegar 2,5 anos de prisão. Após três anos detido, quando chegou a ser
torturado, foi solto por falta de provas. Dois anos depois, se matou.
James Jacobs defende o modelo americano e diz que pessoas
inocentes também podem ser condenadas erroneamente em julgamentos.
Europa
Especialista em direito penal comparado, o professor da
London School of Economics, no Reino Unido, Auke Willems disse à BBC Brasil que
o sistema britânico também costuma resolver a maioria dos casos com
"acordos de confissão", que concedem aos condenados descontos de
cerca de 30% nas penas.
"É um modelo altamente eficiente para lidar com
sistemas legais sobrecarregados de processos, ao mesmo tempo em que levanta
questões sobre imparcialidade e presunção de inocência, pois esses casos nunca
chegarão à fase de julgamento", nota ele.
"Na Inglaterra, as punições são imediatamente efetivas,
mesmo quando o réu entra com um recurso. Seu status é o de um prisioneiro
condenado", ressalta ainda.
Já nos sistemas penais da Europa continental, observa, é
comum que o condenado possa recorrer em liberdade e a pena só seja cumprida
depois de esgotados os recursos. No entanto, segundo pesquisa da BBC News
Brasil, os réus, em geral, têm direito a menos graus de apelação do que no
sistema brasileiro.
Aqui, há quatro instâncias possíveis de julgamento.
Primeiro, nas varas criminais e, depois, nos tribunais estaduais ou regionais
federais, em que são analisados os fatos concretos e provas. Já o Superior
Tribunal de Justiça (STJ) e o STF julgam se a lei foi corretamente aplicada nas
instâncias inferiores, podendo absolver condenados se houver ilegalidades no
processo.
A Itália também oferece quatro instâncias, destaca o
professor da LSE. Já no caso da Holanda, país de origem de Willems, ele explica
que há três instâncias, sendo que a última, a Suprema Corte, só julga aplicação
de lei e não é acionada com frequência. Lá, a pessoa só pode ser presa depois
de esgotada a possibilidade de recursos,.
Aqui, o acesso às cortes superiores é mais comum porque
nossa Constituição prevê competência mais ampla ao Supremo do que a de outros
países. Isso se agrava pelo fato de que tribunais de segunda instância com
frequência ignoram a jurisprudência do STJ e do STF e julgam contrariando a
orientação dessas cortes, conforme mostra levantamento da FGV de 2014.
Já na França, onde também há três instâncias, recursos para
a Suprema Corte, em geral, não têm efeito suspensivo sobre a pena, o que
significa que condenações em segunda instância já levam à prisão, indicou
pesquisa de Willems feita para essa reportagem.
Em Portugal, por sua vez, a Constituição prevê que "o
arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias
de defesa".
Lá, apenas crimes graves, com pena superior a oito anos, são
julgados em quatro instâncias, explicou à BBC News Brasil Maria João Antunes,
ex-ministra do Tribunal Constitucional português e professora de Ciências
Criminais da Universidade de Coimbra. Os demais crimes são analisados em três
instâncias.
Muitas instâncias ou muitos recursos?
Na Alemanha, o Código de Processo Penal prevê que só se pode
cumprir pena após esgotadas as possibilidades de recurso, observa Luís Henrique
Machado, criminalista com mestrado na Universidade Humboldt de Berlim, onde
agora cursa o doutorado.
De modo geral, porém, ele diz que é comum que o processo
transite em julgado após julgamento em apenas dois graus. Isso porque crimes
considerados graves, como homicídio, já começam a ser julgados na segunda
instância, cabendo apenas recurso para a corte superior.
Machado considera positivo o Brasil ter quatro níveis de
julgamento. Contra a morosidade da Justiça, defende mais investimento em número
de magistrados, tecnologia e uma reforma que reduza a possibilidade de
recursos, mas não o número de instâncias.
"No Brasil, as pessoas só olham para o copo meio vazio.
Se por um lado temos um número maior de instâncias, temos também um número
maior de juízes analisando o caso. Com isso, você reduz sensivelmente a
possibilidade de erro judicial", defendeu.
Mudança deveria passar por alteração na Constituição?
Mesmo alguns juristas que entendem que pode ser positivo o
Brasil convergir para a realidade de outros países ressaltam que isso exigiria
alterar a Constituição. Tanto é assim, argumentam, que o ex-ministro Cezar
Peluso, em 2011, quando era presidente do STF, propôs ao Congresso uma emenda
constitucional que abriria espaço para prisão após condenação em segunda
instância.
Para a professora de Direito Penal Econômico da FGV Heloisa
Estellita, o Supremo está fazendo uma interpretação inconstitucional do texto e
usurpando uma prerrogativa do Congresso, que é eleito para nos representar e
alterar as leis.
"É muito grave. Se o Supremo, que deveria ser guardião
da Constituição, descumpre uma norma constitucional, por que você ou eu vamos
cumprir a lei?", questiona.
Já quem defende que o Supremo pode, sim, tomar essa decisão,
como a coordenadora da Câmara Criminal do Ministério Público Federal,
subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen, argumenta que a análise do
fato concreto e das provas é feita até a segunda instância apenas.
Ela destaca que, de 1988, quando a Constituição foi
promulgada, até 2009, o entendimento do STF era pela possibilidade de prisão
após condenação em segundo grau. Apenas em 2009 isso foi alterado e, em 2016,
voltou-se ao primeiro entendimento.
"O que nós argumentamos é que, se houver um excesso, se
houver um questionamento cabível, a defesa sempre vai ter a possibilidade de
apresentar um pedido de habeas corpus para impedir a prisão", explicou.
Esta reportagem, originalmente publicada em 2018, foi
atualizada a partir de novos contatos com os entrevistados.