Enquanto profissionais dos mais diversos ramos estão concentrados
no enfrentamento da epidemia de COVID-19, monitorando o número de casos em
centenas de Estados e acompanhando os desafios do combate ao vírus em
diferentes continentes, especialistas do direito penal internacional voltam sua
atenção para um só país: a Alemanha. Ali, nas cidades de Frankfurt e Koblenz, a
história do direito penal internacional está sendo transformada.
Os tribunais alemães, baseados no princípio de jurisdição
universal, iniciaram julgamentos pioneiros: em Frankfurt, pela primeira vez, um
alegado membro do ISIS vem a juízo pelo crime de genocídio contra a minoria
Yazidi. Em Koblenz, oficiais do governo sírio serão julgados por supostos
crimes contra a humanidade de forma inédita.
O caso Taja Al-J e o genocídio contra a comunidade Yazidi
Em Frankfurt, o Tribunal Regional Superior iniciou, em abril
de 2020, um dos julgamentos mais notáveis da década. É o primeiro caso da
história a abordar as atrocidades cometidas contra os Yazidis e incluir entre
as acusações o crime de genocídio.
O suspeito é Taha Al-J, nacional iraquiano de 27 anos,
suspeito de ser membro do chamado Estado Islâmico (ISIS) e acusado de genocídio
contra a comunidade Yazidi, tráfico de seres humanos e crimes de guerra.
As acusações contra Taja Al-J são articuladas nos termos do
Código de Crimes Contra o Direito Internacional (CCAIL), que implementa o
Estatuto do Tribunal Penal Internacional no direito penal alemão. Se condenado, o iraquiano deverá enfrentar sentença
de prisão perpétua.
As acusações, no entanto, têm sido criticadas por não
reconhecerem crimes relacionados a gênero; apesar da existência de evidências
nesse sentido, os atuais indiciamentos de Taha não incluem crimes de violência
sexual contra os Yazidis. Ao não considerá-los, o tribunal alemão arrisca minar
a legitimidade do julgamento, uma vez que as acusações refletem tão somente uma
seleção de crimes, e não toda a extensão de atos que o acusado supostamente
teria cometido.
Os Yazidis são uma minoria religiosa curda, que contam com
mais de um milhão de indivíduos espalhados em todo o mundo. Como grupo, os
Yazidis têm sido especificamente visados por membros do ISIS, e devido às
perseguições, tanto as Nações Unidas quanto o Parlamento Europeu classificaram
como genocídio tais eventos.
Atualmente, a grande maioria dos Yazidis vive no noroeste do
Iraque, embora a comunidade tenha representação expressiva na Síria, Turquia e
Irã. Em 2014, a crescente presença do ISIS no Iraque começou a afetar os
Yazidis. Em 3 de agosto, extremistas do ISIS atacaram a cidade de Sinjar, onde
cerca de 5.000 homens Yazidis foram assassinados e aproximadamente 7.000
mulheres e crianças foram sequestradas.
Em 2015, representantes dos Yazidi instaram o Tribunal Penal
Internacional para investigar sua perseguição como um possível caso de
genocídio. A Promotora Fatou Bensouda, no entanto, decidiu não abrir
formalmente investigações sobre os crimes cometidos pelo ISIS, uma vez que a
"base jurisdicional" para um exame era, à época, ainda "muito
estreita". Contudo, a Promotoria declarou-se aberta ao recebimento de
novas evidências sobre a situação assim que disponíveis.
Ao submeter um caso ao princípio da jurisdição universal,
como no caso Taha Al-J, um Estado permite por seu direito interno o exercício
de jurisdição para processo de autores de crimes internacionais, ainda que os
crimes em questão tenham ocorrido em território estrangeiro e que os acusados
sejam nacionais de outros países. O princípio abre portas para que cortes
domésticas possam julgar nacionais de diferentes Estados por crimes
internacionais, abrindo vias para que os perpetradores sejam criminalmente
responsabilizados, prevenindo a impunidade.
O caso de Taha Al-J é considerado inédito por ser o primeiro
julgamento o de um suposto militante do ISIS pelo crime de genocídio contra a
minoria Yazidi. Além disso, é o primeiro caso de genocídio sendo julgado sob
jurisdição universal instituída pelo Código de Crimes Contra o Direito
Internacional alemão. Apesar das sólidas críticas à discricionariedade das
acusações, que não teriam incluído alegados delitos de violência sexual, o
julgamento é um passo importante para a obtenção de justiça para os Yazidis. O tribunal alemão pode ser uma plataforma
interessante para avançar questões sobre genocídio e implementação do direito
penal internacional em cortes domésticas.
Oficiais sírios e os casos de tortura no centro de detenção
al-Khatib
Em Koblenz, o princípio da jurisdição universal é também
utilizado para julgamento de dois nacionais sírios por crimes contra a
humanidade. No final de abril de 2020 iniciou-se o primeiro julgamento perante
o Tribunal Superior de Koblenz de integrantes do aparato do Estado sírio por
crimes cometidos durante o conflito no país. Um dos acusados é Anwar R.,
oficial do Departamento de Inteligência Geral Al-Khatib em Damasco, e o outro
Eyad A., seu subordinado, também integrante do serviço de inteligência síria.
Ambos respondem por crimes contra a humanidade na forma de tortura.
Segundo relatos, eles teriam sido responsáveis pela tortura
de ativistas e manifestantes antigoverno no centro de detenção al-Khatib, da
Direção de Inteligência Geral em Damasco (também conhecido como "Filial
251"). Ansar R., sozinho, é acusado de ser responsável, em sua capacidade
de chefe da seção de investigações, por aproximadamente 4 mil casos de tortura,
mais de 50 assassinatos e inúmeros casos de violência sexual cometidos entre
2011 e 2012. Eyad A, por sua vez, teria
ajudado e encorajado ao menos trinta casos de tortura no centro al-Khatib.
Anwar e Eyad foram presos na Alemanha em fevereiro de 2019,
como parte de uma operação conjunta das autoridades francesas e alemãs. As
investigações foram resultado de uma série de denúncias feitas por pela
organização alemã ECCHR e ativistas sírios. Por ser um dos nomes do regime mais
conhecidos por comunidades sírias e de especialistas, Anwar R. acabou por ser
preso e levado a juízo na Alemanha de forma curiosa, iniciada por sua
identificação acidental por ativistas sírios em um supermercado alemão.
A criminalidade brutal tem sido emblemática no conflito
sírio, tendo o governo de Bashar Al-Assad também sido reiteradamente acusado de
tortura sistemática e generalizada contra a população civil do país. A busca de
justiça para as vítimas, no entanto, continua remota.
Em 2014, Rússia e China bloquearam os esforços do Conselho
de Segurança das Nações Unidas para ativação da jurisdição do Tribunal Penal
Internacional por crimes graves de interesse internacional cometidos na Síria.
Como reação, uma resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu em
2016 um novo mecanismo internacional, para reunir, analisar e garantir
evidências de crimes graves cometidos durante o conflito sírio. O IIIM, como é
chamado, tem como objetivo facilitar e agilizar processos criminais justos e
independentes por violações de direito internacional humanitário e direitos
humanos perpetrados na Síria.
O caso demonstra a escala das atrocidades que acontecem na
Síria. Caso as alegações restem provadas e uma única pessoa seja tida como
responsável por mais de 4 mil casos de tortura, pode-se imaginar a proporção
dos crimes cometidos por todo o aparato do governo sírio. O caso é uma gota no
mar do que aconteceu e continua acontecendo na Síria. Contudo, a visibilidade
trazida pelo caso pode ajudar a expor todo o sistema.
O direito penal internacional após Frankfurt e Koblenz
Ambos os julgamentos de Taja Al-J, em Frankfurt, e dos
oficiais sírios Anwar R. e Eyad A., em Koblenz, são inéditos e suscitam
expectativas da comunidade internacional quanto à potencial habilidade de
comunicar o genocídio Yazidis e as torturas orquestradas pelo governo sírio não
só para uma audiência alemã, mas para uma audiência internacional.
É difícil imaginar que tais julgamentos possam trazer
justiça para as milhares de vítimas Yazidis e sírias e, até a data, as
investigações e os processos criminais em curso são insuficientes, trazendo à
tona a necessidade de uma justiça internacional mais abrangente. Contudo, os
casos são mais um passo em um esforço conjunto da comunidade internacional para
a responsabilização de perpetradores de graves crimes de interesse
internacional.
Para saber mais sobre os Yazidis:
Filmes:
· Sister in Arms
· On Her Shoulders
· Life on the Border
Livros:
· The Girl Who Escaped ISIS: This Is My Story - Farida
Khalaf
· The Last Girl: My Story of Captivity and My Fight Against
the Islamic State - Nadia Murad, Jenna Krajeski, Amal Clooney.
Críticas sobre a questão de gênero:
· KATHER, Alexandra Lily; SCHWARZ, Alexander. First Yazidi
Genocide Trial Commences in Germany, 23 de Abril de 2020. Acesso:
https://www.justsecurity.org/69833/first-yazidi-genocide-trial-commences-in-germany/
Fonte: Cosmopolita