No dia 30 de maio de 1431, a jovem francesa Joana
D’Arc, nascida na comuna de Domrémy-la-Pucelle, foi queimada em praça pública
ao ser acusada de heresia e feitiçaria por um tribunal eclesiástico inglês e
francês. Na época, ela tinha somente 19 anos.
Muitos anos se passaram e a história de Joana
D’Arc, heroína que garantiu substanciais vitórias ao exército francês durante a
Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), foi revisitada, reconsiderada e, hoje, ela é
tida como a Santa Padroeira da França.
Abaixo, reunimos em lista fatos sobre a trajetória
desta lenda que mescla realidade histórica com fantasia e misticismo:
Nascimento
Joana D’Arc nasceu na comuna de Domrémy (que posteriormente foi nomeada de
Domrémy-la-Pucelle em homenagem ao epíteto que a guerreira usava), na região de
Lorena, na França.
Não se sabe ao certo a data de seu nascimento, visto que naquela época
as pessoas não contavam exatamente as idades. Há uma estimativa de que ela
tenha vindo ao mundo em 1412, segundo seu depoimento no julgamento. “Tenho 19
anos, mais ou menos”, revelou ela em 1431.
A garota era a caçula entre quatro filhos do casal de agricultores e
artesãos Jacques d’Arc e Isabelle Romée. A família era muito religiosa,
inclusive Joana, que frequentava a Igreja com regularidade.
Infância e a Guerra
A infância e pré-adolescência de D’Arc foram marcadas pelo evento
histórico conhecido por Guerra dos Cem Anos (1337 – 1453), conjunto de batalhas
travadas entre os reinos francês e inglês pela conquista da França.
Tudo começou em 1328, quando rei francês Carlos IV morreu sem deixar
herdeiros direitos. Diante a situação, o rei inglês, Eduardo III, afirmou que a
posição deveria ser sua, já que ele era sobrinho do falecido monarca. No
entanto, a realeza da França não gostou muito da ideia e empossou o conde Felipe
VI.
O impasse político e a disputa por
territórios entre os dois reinos resultou em sangrentas batalhas e na divisão
das duas populações. A Inglaterra não parava de conquistar novos territórios
franceses, enquanto o governo da França não conseguia estabilidade: a coroa
transitou entre Felipe VI, Carlos V, Carlos VI e Carlos VII.
Ao mesmo tempo em que Carlos VII
tentava se impor contra o reino inglês e os borguinhões, parcela de franceses
do condado da Borgonha que apoiava os rivais, D’Arc era somente uma criança.
Mas isso não a impedia de vivenciar a guerra.
Como contou em seu julgamento, o
lugar em que ela cresceu era marcado por crianças brigando entre si e algumas
ganhavam até feridas e machucados ensanguentados. Em certa ocasião, seu
vilarejo foi até incendiado. É importante lembrar que o conceito de
"infância" e "adolescência" sequer existia no século 15. Os
jovens eram tratados como adultos em miniatura.
Vozes do além
Aos 13 anos de idade, D’Arc revelou ter ouvido vozes e ter tido visões pela
primeira vez. A garota estava no jardim de seu pai e recebeu aparições do que
acreditou ser o arcanjo São Miguel, a Santa Catarina de Alexandria e a Santa
Margarida de Antioquia, figuras que vieram lhe dizer que ela deveria integrar o
exército francês e ajudar o rei Carlos VII na luta contra a Inglaterra.
Com o tempo, esses episódios foram
ficando mais claros e frequentes, e D’Arc foi acreditando que se
tratavam de mensagens divinas – apesar de médicos especularem hoje em dia
que a garota sofria de alguma condição médica, como esquizofrenia ou epilepsia.
Aos 16 anos, D’Arc pediu a uma
parente para leva-la até a cidade de Vaucouleurs, onde conversou com o
funcionário local do reino francês, Robert de Baudricourt. Lá pediu que o
funcionário a levasse até à corte real francesa, em Chinon.
Baudricourt foi sarcástico e não
atendeu ao pedido da adolescente, mas isso não a deteve. D’Arc continuou a
visitá-lo, até que ganhou aprovação popular e, em 1429, Baudricourt aceitou o
pedido, cedendo a ela um cavalo e a proteção de diversos militares que a
escoltariam pelo caminho.
Antes de partir para visitar o rei
Carlos VII, porém, D’Arc cortou seu cabelo curto e vestiu-se como um homem.
Após 11 dias de viagem, a jovem chegou até o reino francês.
O encontro com o rei
Um dos maiores mistérios da história é tentar entender como Carlos VII, o líder
máximo da França, aceitou receber uma adolescente analfabeta que alegava
receber mensagens divinas em seu gabinete. E mais ainda: como um monarca
daquela magnitude acreditaria nas palavras da menina e permitiria que ela
liderasse parte de seu exército em uma guerra sangrenta.
“Nós nunca saberemos o que aconteceu
em Chinon. Esse é um dos maiores mistérios da história”, escreveu a
historiadora Marina Warner, professora da Universidade de Essex (Reino Unido)
em sua obra Joan of Arc: The Image of Female Heroism (1981),
sem tradução para o português.
É válido mencionar que durante o
posterior julgamento de D’Arc, quando ela foi capturada pelos borguinhões, ela
recusou contar o que aconteceu em Chinon e apenas disse que o rei Carlos VII
havia recebido um sinal para entender que a história que ela contava era
verdadeira.
Há fontes que dizem que D’Arc foi
capaz de identificar o rei vestido como um simples nobre diante uma multidão, o
que garantiu que ele confiasse na palavra da garota.
A situação precária e as constantes
derrotas do exército francês também foram uma razão para que o rei e toda a
realeza confiassem nas palavras da menina. É isso que sustenta o historiador
Stephen W. Richey, autor do livro Joan of Arc: The Warrior Saint (2003),
sem tradução para o português, no trecho abaixo:
“Depois de anos de humilhação e de
derrotas uma atrás da outra, o exército e a liderança civil da França estavam
desmoralizados e em descrédito. Quando Carlos atendeu ao pedido de equipar
Joana para a guerra e coloca-la à frente de seu exército, sua decisão deve ter
tido como base que todos os ortodoxos e todas as opções racionais haviam sido
testadas, mas haviam falhado. Somente um regime em seus últimos momentos de
desespero poderia prestar atenção em uma garota analfabeta que alegava ouvir a
voz de Deus instruindo-a a tomar conta do exército de seu país e leva-lo à
vitória.”
De qualquer forma, D’Arc foi avaliada
em diversos aspectos para que suas palavras viessem a ser consideradas pelo
rei, tal como ser interrogada por clérigos e ter que realizar exame para
confirmar sua virgindade.
Liderando o exército
Depois da conversa com o rei, D’Arc – já com 17 anos – conseguiu a autorização
real para integrar o exército, recebeu doações de equipamentos, artigos de
proteção e alguns soldados para aliviar a tensão com os ingleses na região de
Orleães, na região norte-central da França.
Apesar de existir a crença popular de
que D’Arc comandou o exército francês, esse é um assunto incerto que segue
sendo debatido por historiadores. Há quem diga que a garota nunca matou nenhum
inimigo e que sua presença durante as batalhas eram mais figurativas. Mas
também há quem acredite que ela tenha surtido um efeito profundo nas decisões
do exército. Ou seja, que seus conselhos eram aceitos e tidos como divinos.
Apesar da imprecisão, todos concordam
que a força armada francesa gozou de notável sucesso durante o período em que
D’Arc o integrou.
De acordo com a filósofa Siobhan
Nash-Marshall, autora do livro Joan of Arc: A Spiritual Biography (1999),
sem tradução para o português, na primeira batalha que D’Arc participou, na
região de Orleães, ela forneceu impulso moral aos civis e soldados franceses:
“A moral francesa era tão baixa antes de ela aparecer que os franceses até
perdiam as lutas em que eram maiores em exército do que os anglo-borgonheses.
Normalmente, eles preferiam simplesmente ficar fora do campo de batalha”,
escreve a pensadora.
Com os esforços do exército, a região
de Orleães foi garantida pelos franceses, em contrapartida do recuo dos
ingleses. Outras batalhas pontuais pela região da França foram repetindo o
mesmo padrão.
Para os ingleses, as vitórias dos
inimigos e o poderio da jovem camponesa indicavam que ela era, na realidade,
uma bruxa possuída pelo diabo. A ideia de que Deus estaria apoiando a França em
detrimento deles não era nenhum pouco atraente.
Com as seguintes vitórias franceses,
havia chegado o momento ideal para coroar e consagrar a realeza de Carlos VII.
A cerimônia aconteceu em 17 de julho de 1429 na cidade de Reims, que estava há
pouco sob controle dos anglo-borgonheses e agora, graças aos esforços do
exército e de D’Arc, havia voltado a integrar o reino da França.
Esse foi o auge militar e a síntese
do objetivo inicial da camponesa.
Em seu posterior julgamento, D’Arc
revelou que abraçou o rei recém-coroado aos seus pés e lhe disse: “Gentil rei,
agora foi executada a vontade de Deus, que desejava que os cercos de Orleães
fossem levantados e que você fosse trazido à Reims para receber sua sagrada
consagração, mostrando, assim, que você é um rei de verdade e a quem o reino da
França pertence”.
Derrocada e captura
Para legitimar a coroação de Carlos VII, o rei deveria marchar até Paris, a
capital da França.
D’Arc e os militares acreditavam que
seria melhor uma marcha rápida de Reims até Paris para evitar investidas
inimigas, mas a corte real preferiu apostar em uma trégua de batalhas com os
borgonheses para o percurso ser mais seguro.
No entanto, o duque de Borgonha,
aproveitou o acordo e reforçou a defesa da capital e em outras cidades, pegando
de surpresa os franceses pelo caminho.
Sem muitas opções, o exército da
França aceitou a rendição em várias cidades sem nem mesmo lutar. Quando
chegaram à Paris, em setembro, foram atacados. Foi a partir desse episódio que
todo o esforço e luta de D’Arc começaram a falhar.
O governo real decidiu dissolver o
exército e iniciou uma campanha em busca de diplomacia e consolidação de seus
ganhos anteriores. Com essa nova medida, D’Arc já não tinha mais apoio para
empreender sua luta: nem armamento, equipamento e, muito menos, homens. Sem o
suporte do rei, ela continuou a participar de batalhas por conta própria com
pouquíssimos militares.
Em maio de 1430, a cidade de
Compiégne foi tomada pelos inimigos e ela decidiu ir – mesmo já tendo recebido
os avisos divinos de que ela seria capturada pelos ingleses. Como era de se
esperar, a força do exército anglo-borgonhês era muito maior do que a sua. Em
23 de maio, ela foi capturada pelas tropas de borgonhesas.
Por um valor de 10 mil libras, D’Arc
foi vendida ao exército da Inglaterra. Há fontes que dizem que quando a garota
soube que iria para as mãos dos inimigos, ela se jogou da torre em que estava
presa. No entanto, sua tentativa de suicídio não funcionou.
Em 1431, D’Arc foi levada para
julgamento e as acusações que pairavam sobre si eram todas de ordem religiosa.
Ela foi chamada de bruxa, herege, possuída pelo demônio, entre outros. Sua
virgindade foi questionada e até o fato de ela utilizar roupas masculinas foi
uma alegação que os anglo-borgonheses utilizaram para descreditar a camponesa.
Enquanto ela era julgada, o rei
Carlos VII não fez nenhum esforço para recuperá-la. “Isso sugere que, por mais
difícil que pareça, Carlos e seus conselheiros estavam desiludidos o suficiente
para tolerar a condenação dela como herege”, escreve a historiadora Warner.
Em 30 de maio de 1431, Joana D’Arc
foi levada para a fogueira. Enquanto o fogo se espalhava por seu corpo e a
plateia a chamava de “bruxa”, “mentirosa” e “blasfema", ela pronunciava
suas últimas palavras, “Jesus! Jesus! Jesus”, até não conseguir dizer nada
mais.
Canonização
Apesar de ter morrido como herege e bruxa, nos séculos seguintes, a história de
D’Arc foi revisitada.
Durante a década de 1456, a camponesa
foi considerada inocente pelo Papa Calisto III. Em 1909, cinco séculos depois,
a Igreja Católica autorizou a beatificação da moça. Em 1920, ela é finalmente
canonizada pelo Papa Bento XV.
Hoje, ela é considerada um ícone
sagrado na França e também está sincretizada em religiões afro-brasileiras,
como a orixá Obá.
Adaptação na mídia
Joana D'Arc foi e ainda é uma figura bastante adaptada em livros, filmes,
músicas e outras peças de entretenimento. Em 1899, Georges Méliès digiriu o
primeiro filme sobre a heroína, de nome homômimo. Porém, o mais famoso (e mais
recente) é o Joana D'Arc (1999), de Luc Besson.
Na literatura, o gaúcho Érico
Veríssimo escreveu a biografia romanceada A vida de Joana d'Arc (1935),
além das mais variadas biografias elaboradas por historiadores.
No campo musical, a banda Arcade Fire
produziu a música "Joan of Arc".
Há até um game que revisita a
história da guerreira francesa: Wars & Warriors: Joan of Arc(2004),
lançado pela desenvolvedora Enlight Software, além da menção da heroína nos
jogos Perfect Dark (2000) e Age of Empires II (1999).
Com informações de Live Science.
Fonte: Revista Galileu
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