O magistrado brasileiro da Corte Internacional de Justiça da
ONU explica nesta entrevista os últimos sucessos da justiça universal
O juiz brasileiro Antônio Cançado Trindade (Belo Horizonte,
1947) se dedica há quase quatro décadas ao direito internacional, em uma
carreira que o levou a ser presidente da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e, desde 2009, magistrado da Corte Internacional de Justiça da ONU, em
Haia. Cançado Trindade, que deu esta entrevista por escrito, esteve na semana
passada em Madri para proferir uma conferência magna no Master de Governança e
Direitos Humanos da Universidade Autônoma.
Pergunta. Qual é o papel dos Estados para ajudar a justiça
universal a se ampliar o máximo possível?
Resposta. Os Estados devem assumir suas obrigações como
partes nas convenções internacionais que disponham sobre o princípio da
jurisdição universal. Tais convenções, como as das Nações Unidas, são as que
proveem a base mais sólida para a aplicação do princípio da jurisdição
universal em nossos tempos. A partir daí, um papel importante está reservado
também aos tribunais nacionais. Um exemplo recente se encontra na Sentença da
Corte Internacional de Justiça (CIJ) de 20 de julho de 2012, no caso Bélgica
versus Senegal, originado nas violações massivas de direitos humanos (torturas,
execuções sumárias e massacres) sob a repressão do regime de Habré no Chade
(1982-1990). Os prolongados esforços das vítimas em busca da justiça
compreenderam ações legais perante tribunais nacionais (em Dacar, para onde
Habré fugiu, e Bruxelas) e pedidos de extradição. A CIJ constatou violações da
Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e afirmou a necessidade de
cumprimento do dever de ajuizamento sob aquela Convenção. Na apresentação do
meu voto, ressaltei a necessidade de levar em conta o sofrimento e as
necessidades das vítimas, em sua busca de justiça para pôr fim à impunidade. A
realização da justiça como uma forma de reparação é essencial à reabilitação das
vítimas. Na minha percepção, extrapolamos aqui o enfoque tradicional
interestatal, ao atribuir uma posição central aos indivíduos vitimados, e não a
seus Estados.
P. Além de apoiar os tribunais internacionais, os tribunais
nacionais devem ir em busca da justiça universal?
R. O caso citado se encontra agora em mãos do Poder
Judiciário senegalês. Já foram dados os primeiros passos para o julgamento de
Hissène Habré. Nesta segunda década do século XXI, o princípio da jurisdição
universal parece inspirado pelo ideal de uma justiça universal, sem limites no
tempo (passado ou futuro) nem no espaço (transfronteiriça). Salvaguardar
valores fundamentais compartilhados pela comunidade internacional como um todo
transcende a dimensão interestatal.
P. Como afeta a credibilidade da justiça universal o fato de
haver grandes potências que não aceitam a jurisdição internacional sobre seus
cidadãos?
R. A credibilidade da justiça internacional se sustenta pela
sólida fundamentação de suas sentenças e decisões. O fato de que haja grandes
potências que não aceitam a jurisdição internacional em relação aos próprios
cidadãos afeta a credibilidade das tais potências, e não a da justiça
internacional. Tais potências, para manterem coerência com seu discurso oficial,
devem garantir a todas as pessoas sob sua jurisdição o pleno acesso à justiça,
tanto no plano nacional como internacional. Esse tema figura desde 2006 na
agenda da Assembleia-Geral das Nações Unidas. Durante meus anos como presidente
da Corte Interamericana de Direitos Humanos (1999-2004), insisti na necessidade
de que todos os membros da OEA aceitassem a Convenção Americana como a melhor
demonstração de seu real compromisso com os direitos humanos. Ainda resta um
longo caminho para percorrer.
P. As sentenças mais recentes que conhecemos da Corte de
Haia tinham a ver com disputas fronteiriças. É difícil para os cidadãos de um
país entenderem qual é a autoridade de Haia para estabelecer fronteiras.
R. Nos últimos quatro anos houve uma considerável diversidade
temática nas sentenças do CIJ, talvez como nunca antes. A CIJ foi chamada a se
pronunciar sobre as mais diversas controvérsias internacionais, incluindo
fronteiriças, entre várias outras. A Corte as decide em conformidade com seu
estatuto (que forma um todo orgânico com a Carta das Nações Unidas) e seu
Regulamento. Para uma corrente de pensamento (a qual defendo), sua função vai
mais além, ao resolver a controvérsia e dizer qual é o direito.
P. Ao mesmo tempo, esse tipo de caso dá a sensação de que as
decisões de Haia estão muito distanciadas dos cidadãos. Poderia dar um exemplo
de sentença que mudou a vida das pessoas em algum lugar?
R. Há alguns casos que se tornaram paradigmáticos, que
tiveram impacto sobre as condições de vida da população, e que efetivamente
revelaram, em um sentido pedagógico, a importância da CIJ. Em um exemplo bem
recente, de março de 2013, no caso da disputa fronteiriça entre Burkina Fasso e
Níger, a CIJ procedeu para determinar o traçado de sua fronteira, em uma região
habitada por populações nômades e seminômades. As condições de vida de tais
populações locais foram levadas em conta. Na apresentação do meu voto, me
concentrei em todo esse “fator humano”, para demonstrar que, mesmo um tema
ainda clássico como o do território, é hoje abordado conjuntamente com a
população. Os Estados têm fins humanos: acima da soberania estatal, a lição
básica deste caso está centrada na solidariedade humana, no mesmo nível que a
necessária segurança jurídica das fronteiras. Outro exemplo é o caso do Templo
de Preah Vihear (Camboja versus Tailândia): a CIJ conseguiu pôr fim às recentes
hostilidades armadas na fronteira, ao ordenar a criação de uma zona
desmilitarizada ao redor do Templo e nas proximidades da fronteira entre os
dois países. Nessa ocasião argumentei que a correta determinação da CIJ, da
criação da citada zona desmilitarizada, busca proteger não somente o território
em questão, mas também as populações que nele vivem, assim como um conjunto de
monumentos ali situados, formando, por decisão da UNESCO, um patrimônio
cultural e espiritual da humanidade. Os conflitos armados nos arredores do
Templo cessaram. A CIJ superou a visão exclusivamente territorialista, levando
em conta também a população que vive no território em questão. A CIJ deu
expressão à nova visão do direito internacional humanizado de nossos tempos.
Acima dos Estados estão os seres humanos que os compõem.
P. O que pensa dos questionamentos recentes que alguns
países latino-americanos fazem da justiça interamericana?
R. A Corte Interamericana de Direitos Humanos deve continuar
se ocupando da boa fundamentação de suas sentenças e decisões. Deve, além
disso, reagir a questionamentos recentes de alguns países, que buscam politicar
o sistema regional de proteção. Reagir de que modo? A meu ver, exigindo a
execução integral (e não apenas parcial, como vem fazendo) de suas sentenças.
Se não, não há acesso à justiça em sentido amplo, o qual, da perspectiva das
vítimas, abrange o acesso formal, as garantias do devido processo legal e a
execução plena das sentenças. No caso de claro descumprimento de suas
sentenças, a Corte Interamericana deve aplicar a sanção prevista no artigo 65
da Convenção Americana: levar tal descumprimento ao conhecimento do Conselho
Permanente e da Assembleia-Geral da OEA, tal como fez duas vezes (em 2000 e
2003) na minha época à frente daquele tribunal internacional. Isso é
necessário, pois, distintamente da Corte Europeia, a Corte interamericana não
dispõe de um Comitê de Ministros para ajudá-la nesse particular.
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