Na semana passada [março/2018], o assassinato da vereadora carioca
Marielle Franco (PSOL) fez com que brasileiros debatessem o que significam
exatamente os direitos pelos quais ela lutava, gerando acaloradas discussões
online.
De um lado, aqueles que lamentavam a perda de uma política
ativa na defesa dos negros, dos homossexuais e dos moradores de comunidades
carentes, e do outro insinuações de que como defensora dos direitos humanos ela
"defendia bandidos" e que isso poderia ter uma relação com seu
assassinato.
Mas afinal, o que são direitos humanos? Defender os direitos
humanos é defender bandidos? E há razões para o conceito ser comumente
relacionado a determinados grupos políticos?
Direitos humanos são os direitos básicos de todos os seres
humanos, como, simplesmente, o direito à vida. Mas estão incluídos neles também
o direito à moradia, à saúde, à liberdade e à educação.
"São muitos direitos - civis e políticos, como o
direito ao voto, à liberdade. E o direito ao devido processo legal", diz a
advogada especialista em direitos humanos Joana Zylbersztajn, doutora em
direito constitucional pela USP e consultora da Comissão Intramericana de
Direitos Humanos na OEA (Organização dos Estados Americanos).
Para Maira Zapater, professora de Direito Penal da FGV e
doutora em Direitos Humanos pela USP, "a democracia é praticamente
sinônimo dos direitos humanos".
"A escolha do representante se dá pelo método da
maioria. Para que essa escolha aconteça, há diversas premissas: o direito ao
voto, por exemplo, e que as minorias tenham seus direitos resguardados",
afirma. "É o único regime em que é possível assegurar os direitos
humanos."
Direitos e impunidade
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha, encomendada pelo
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, apontou que 57% da população de
grandes cidades brasileiras concorda com a frase "bandido bom é bandido
morto". Na prática, a afirmação é uma violação aos direitos humanos.
Significa que mais da metade da população de grandes cidades defende a justiça
feita pelas próprias mãos, atropelando o devido processo penal do Estado
democrático de direito e defendendo o fim da vida de alguém, ou seja, violando
o princípio mais básico dos direitos humanos: o direito à vida.
Zylbersztajn lembra que "uma pessoa que comete crime
tem direito à defesa, ao devido processo legal, e que cumpra pena à qual ela
foi julgada".
"Os direitos humanos não vão garantir impunidade, vão
garantir que a pessoa tenha defesa, tenha um processo justo. Isso é difícil de
entender, às vezes", diz, citando os sentimentos de "vingança",
de "não querer que criminosos tenham direitos protegidos".
"É natural para o ser humano sentir isso. Mas o Estado
não pode oficializar o direito de vingança."
A proteção dos direitos humanos de criminosos garante que os
direitos humanos sejam universais.
"Criminosos também têm esses direitos, o que não tira
sua responsabilidade pelos crimes que cometeram. Eles têm direito à vida, de
não ser torturados. Direitos humanos são de todos", diz Rogério Sottili,
diretor-executivo do Instituto Vladmir Herzog que foi secretário nacional de
Direitos Humanos nos governos Lula e Dilma Rousseff (PT).
Zylbersztajn cita um estudo da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República feito há dez anos que mostrou que a
percepção negativa dos direitos humanos era algo muito mais
"vociferado" do que de fato percebido dessa maneira pelas pessoas.
Ou seja, direitos humanos serem coisa de "bandido"
seria muito mais um discurso do que uma crença verdadeira. Quando questionadas,
as pessoas identificaram direitos básicos como o que são de fato: saúde e
educação para todos, entre outros.
História
Não há consenso sobre a origem dos chamados direitos
humanos. Estudiosos citam diversos momentos da história em que determinados
direitos foram reivindicados ou garantidos por diferentes grupos. Mas há alguns
momentos-chave citados pela maioria.
Filósofos da Idade Média e do início da Idade Moderna já
falavam em seus livros que humanos tinham direitos fundamentais, explica à BBC
Brasil o americano Samuel Moyn, professor de direito e história da Universidade
Yale e autor do livro The Last Utopia: Human Rights in History (A Última
Utopia: Direitos Humanos na História, em tradução livre).
Mas ele diz que só nas revoluções que levaram à
independência dos Estados Unidos em 1776 e a Francesa, em 1789, normatizaram
esse conceito.
Mais citado entre todos os especialistas, o documento que
organizou e internacionalizou essas normas foi a Declaração Universal de
Direitos Humanos, de 1948, da ONU, criada depois da Segunda Guerra Mundial.
"No Holocausto, não era uma verdade que todas as
pessoas tinham os mesmos direitos por serem pessoas. Os homossexuais, os
negros, os judeus eram considerados como não pessoas e, portanto, não tinham
direito à vida. Pelo simples fato de serem quem eram, deveriam ser retirados da
sociedade", diz Zapater.
"É com a Declaração Universal dos Direitos Humanos que
surge a noção contemporânea de que determinados direitos não podem ser
retirados das pessoas por ninguém sob qualquer pretexto", afirma.
"Quando a pessoa é condenada por um crime, ela tem seu direito de ir e vir
restringido, mas não perde outros direitos porque não deixou de ser uma
pessoa."
Disputa ideológica
Desde sua sistematização, porém, os direitos humanos sempre
foram disputados por diferentes forças: a progressista, de um lado, e a
conservadora de outro, por exemplo.
"Em todos os lugares, direitos humanos são usados para
defender minorias. E em todos os lugares direitos humanos são então tratados
retoricamente como um plano partidário", afirma Moyn.
Ele explica que a esquerda e a direita, como ideias, têm
origem na Revolução Francesa, quando os direitos humanos estavam associados à
redefinição de o que significava ser um cidadão moderno. "Muitas pessoas
prefeririam viver em uma sociedade em que os direitos humanos não precisassem
ser garantidos, porque interferem na hierarquia da sociedade", afirma.
No século 18, diz Zapater, surge o posicionamento de que o
Estado não tem o direito de tirar a vida, de restringir a liberdade religiosa
ou a de ir e vir. A defesa dessas liberdades era encampada pela direita em seu
início. "Os liberais, que falam que o Estado não deve intervir, são
aqueles que historicamente defendiam o direito à liberdade" - portanto, os
que, no início, defendiam direitos humanos.
O papel do Estado na garantia dos direitos humanos divide,
então, os campos ideológicos.
"A esquerda, alinhada com o marxismo do século 19 e 20,
diz que o Estado tem sim que realizar intervenções porque o fato de as pessoas
serem iguais perante a lei não quer dizer que vão ser iguais na prática. O
Estado tem que assegurar os direitos, tais quais o direito à educação, tomando
determinadas medidas."
Moyn diz que atualmente a revolução se dá de outra forma.
"Hoje, os direitos humanos atraem uma nova forma de mobilização: não a
revolução política, mas a informação sem violência e o ativismo legal",
afirma.
O debate no Brasil
O debate sobre a expressão dos direitos humanos chega ao
Brasil no fim da ditadura militar no país (1964-1985), quando se começa a
denunciar a violação dos direitos dos presos políticos, segundo Zapater. A transição
da ditadura para a democracia foi o período em que se discutiu as limitações do
uso abusivo da força policial. Foi quando ativistas passaram a reivindicar a
proteção aos direitos humanos dos presos políticos.
E os direitos fundamentais, da vida, das liberdades civis,
segurança, o direito de não ser acusado de forma arbitrária, tudo isso foi
incorporado à Constituição de 1988.
Como a defesa aos direitos humanos, porém, se tornou no
Brasil e outros lugares sinônimo de defesa a "bandidos"?
Especialistas têm diferentes hipóteses para explicar o
fenômeno.
Na visão do sociólogo Sérgio Adorno, coordenador do Núcleo
de Estudos da Violência da USP, e de Zapater, da FGV, essa associação se
consolidou após o fim da ditadura.
Adorno diz que durante a transição, houve "uma
verdadeira explosão de conflitos" no Brasil, "homicídios associados
com quadrilhas que disputavam territórios no controle do crime organizado onde
habitam trabalhadores de baixa renda e a polícia".
"Foi gerando a percepção que a democracia não era
suficiente para conter a violência. Com isso, aqueles que eram herdeiros da
ideia de que havia segurança na ditadura mobilizaram de maneira eficaz a ideia
de que direitos humanos era para bandidos, e não para cidadãos."
A consolidação dessa associação teria se dado no fim dos
anos 1980 e ao longo dos 1990.
Zapater cita o papel da imprensa sensacionalista como
propagadora da mensagem. "Quando se tem a democratização em 1985, se
libera uma série de programas (de TV) sensacionalistas, que exploram crime
violentos com o discurso de que 'direitos humanos são direitos de bandidos',
reformulando a ideia que já vinha se disseminando no senso comum nos anos
1970", diz.
Declaração Universal atesta que direitos humanos têm de ser para todos, mas muitos não se sentem incluídos |
A mensagem transmitida, segundo ela, era a seguinte:
"Se os direitos dessa pessoa que roubou, matou ou estuprou não tivessem
sido defendidos, ela não estaria em liberdade, não teria praticado esse
crime". Apresentadores de programas de rádio sensacionalistas comumente se
elegeram para cargos como de vereadores ou de prefeitos encampando esse
discurso, lembra ela.
"Se elegeram falando: 'Vou colocar a Rota (grupo de
operações especiais da Polícia Militar de São Paulo) na rua' para dizer 'aqui a
gente não dá direitos humanos para bandido'", diz, citando frase notória
do ex-prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, hoje preso em Brasília.
O discurso é convincente, segundo ela, porque explora o medo
legítimo das pessoas. A ideia é: "Vou fazer o medo e a sua sensação de
insegurança diminuir, perseguindo os bandidos".
"As pessoas não entendem que a garantia de seu direito
à vida depende do direito à garantia à vida de todos, inclusive de quem é
acusado de um crime. E que muitas vezes isso vai atingir quem não é acusado de
crime."
Sottili, do Instituto Vladmir Herzog, também cita a mídia
como causadora dessa percepção. "A mídia brasileira é muito elitista, e
acaba produzindo uma visão que privilegia um olhar. Seu controle social
estabelece que determinados grupos não devem ter direitos. Qualquer pessoa ou
movimento que tente defendê-los são discriminados", afirma.
'Amadurecimento'
Mas, ao longo dos anos 1990 e 2000, observa Adorno, houve um
"amadurecimento da militância dos direitos humanos" frente ao
discurso vigente, que passou a tratar também "dos temas ligados à segurança
e polícia, condenando o uso abusivo da força, mas dizendo que era preciso ter
condições de trabalho adequadas aos policiais". Ou seja: articulando
interesses sociais diferentes para "construir uma sociedade com controle
legal da violência".
"Isso teve um impacto muito grande e confesso que até
muito recentemente considerava essa questão de 'direitos humanos são para
bandidos' como algo superado", desabafa.
Marielle Franco, por exemplo, foi assessora da Comissão de
Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, onde
prestou auxílio jurídico e psicológico a familiares de vítimas de homicídio ou
de policiais mortos.
"Com suas bandeiras, ela defendia muito mais nossos
policiais do que nós fomos capazes de compreendê-lo e de fazê-lo",
escreveu no Facebook o coronel Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado Maior da
Polícia Militar do Rio. Marielle contava ter ingressado na militância por
direitos humanos depois que perdeu uma amiga vítima de bala perdida num
tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré, no Rio.
Questionado sobre as "prioridades" dos defensores
de direitos humanos -acusados, muitas vezes, de defender direitos humanos de
criminosos mais do que defendem direitos humanos de policiais-, Samuel Moyn, o professor
da Yale especialista em direitos humanos, diz que "a situação normal é que
a polícia receba muita atenção e as vítimas menos, então é natural que as
organizações de direitos humanos procurem corrigir esse desequilíbrio".
"Se a balança mudasse radicalmente, as organizações de direitos humanos
seguiriam essa tendência", afirma.
Direitos humanos a quem, se poucos os têm?
Há outras hipóteses para a percepção negativa dos direitos
humanos. Adorno, por exemplo, observa que a sociedade não conseguiu universalizar
os direitos fundamentais e que isso teria aprofundado o desgaste em relação ao
conceito.
"Nas democracias consolidadas, há um fundo de valores
que é comum, como a vida, que é direito de todos", diz. "A nossa é
uma sociedade que não se reconhece nos direitos universais. A classe média acha
que os direitos que ela desfruta são prerrogativas enquanto mérito pessoal, de
classe - e isso tem vem da história das sociedades modernas, tem a ver com o
liberalismo, o individualismo."
Zylbersztajn tem opinião semelhante. Primeiro, ela diz achar
que há um problema básico de comunicação. "Se as pessoas não entendem o
que são direitos humanos, é porque não se está explicando direito", opina.
Ela também lembra que é difícil identificar os direitos
humanos como universais se o Estado não os garante para todos. "O Estado
democrático de direito não está presente na vida de todo mundo o tempo
todo", diz. "A população não gosta de direitos humanos porque não se
identifica como sujeito de direitos humanos. Mais do que isso, ela não
identifica o que são direitos."
Para Sottili, uma questão central é que "a cultura da
violência é base de todas as relações sociais" no Brasil. "Há pessoas
que experimentam no seu dia a dia a discriminação, a subalternidade, o
preconceito, a violência física."
Por outro lado, diz ele, quem tem uma "condição de vida
razoável acha que seus direitos estão garantidos". "Pelo processo de
privatização, ela garante seus direitos, estuda na melhor escola da cidade, tem
direito à cultura porque paga por isso. A pessoa mais pobre depende da atuação
do Estado."
Para Zapater, há quem não acredite na universalidade dos
direitos humanos por causa do "preconceito racional e econômico que falam
bem alto".
"Existe a ideia de que pessoas negras, periféricas, de
classe econômica mais baixa estariam automaticamente associadas ao crime. Então
garantir direitos humanos a essas pessoas significa garantir direitos humanos a
bandido" - que também deveria ter seus direitos garantidos, de todo modo.
Soluções
Se a causa do problema é diferente na percepção de
especialistas, a solução é unânime: educação.
De acordo com Sottili, "é preciso uma construção
cultural, um processo de longo prazo. (...) Depois da redemocratização do
Brasil, as políticas públicas foram muito intensificadas, mas não conseguiram
promover uma mudança cultural que pudesse mudar a percepção dos direitos
humanos. Uma cultura de 500 anos você não desconstrói em cinco, dez anos".
Zapater defende educação sobre direitos humanos desde o
início, na escola, até a formação dos operadores de direito para que eles
também conheçam melhor a questão.
Fonte: BBC
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