O Caso Olmedo Bustos e otros vs. Chile, decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em 2001, encontra-se na encruzilhada entre o direito à liberdade religiosa e o direito à liberdade de expressão, especialmente cinematográfica, já que envolve a condenação do Estado do Chile por censurar o filme “A última tentação de Cristo”, Martin Scorsese, por violação à honra religiosa.
A controvérsia orbitava os artigos 12 e 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), um conflito material entre Liberdade de Consciência e Religião e à Liberdade de Pensamento e Expressão, de forma respectiva. Para além deste encontro dos direitos, questionava-se o que é, de fato, Liberdade de Consciência: tanto no que tange a liberdade de expressão como no que tange a liberdade de religião. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) submeteu a demanda à Corte em 15 de janeiro de 1999.
O Estado do Chile é condenado, em 5 de fevereiro de 2001, pela Corte IDH. A apreciação da Corte IDH tem como base a decisão da última instância do judiciário chileno pela manutenção da censura do filme “A última tentação de Cristo”. O filme, cuja polêmica ao redor do mundo é notória[2], retrata a vida de Jesus Cristo de forma diversa à preconizada na doutrina Católica. Decide-se, portanto, pela validade da transmissão de determinada mensagem, isto é, da liberdade de expressão, mas também é decidida a validade de mutação de ideias religiosas, a consciência de religião.
Em 1988, ano do lançamento do filme “A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese, o Consejo de Calificación Cinematográfica (CCC) – órgão de censura chileno originário da Ditadura conservado até hoje[3] – proíbe a exibição do filme, alegando questões de honra religiosa. O caso foi levado para a apreciação do judiciário chileno e, em junho de 1997, a censura imposta à exibição cinematográfica da obra foi confirmada pela Corte Suprema do Chile. Portanto, a Corte chilena decide que seria, nesse caso, mais relevante a honra religiosa do que a liberdade de expressão.
Diante do caso, apresenta-se uma petição à CIDH na qual é alegada a violação da CADH – cuja participação do Chile como Estado Parte é ratificada desde 1990[4]. Após uma tentativa infrutífera de solução amistosa entre a Comissão e o Estado, a demanda foi interposta pela Comissão à CorteIDH em janeiro de 1999. Entende a CIDH que a decisão fere Direitos Fundamentais garantidos pelo Pacto de São José da Costa Rica em seus artigos 1.1, 2, 12 e 13. Depois do trâmite processual, a Sentença da CorteIDH declara a violação, por parte do Estado, ao direito à liberdade de pensamento e expressão.
O curioso do debate jurídico no caso é a perquirição da imposição de uma decisão do Judiciário, amparada pelo Legislativo local, violando a CADH. Comumente, entende-se a Responsabilidade Internacional do Estado comprometida por atos do Executivo. No caso, a decisão da Corte Suprema, baseada em um dispositivo constitucional chileno, deu origem à violação do art. 13 da Convenção Americana. Apesar de o Estado alegar que uma decisão judicial não era suficiente para a caracterização do ilícito internacional, já que o ilícito deveria ser acompanhado da inatividade dos órgãos do Legislativo e do Executivo, a tese não prospera perante a Corte Interamericana. Embora que, para o Direito Constitucional, as competências dos Poderes sejam motivo relevante para os processos internos, são questão factual no Direito Internacional. Segundo Cançado Trindade, “O Estado, como um todo indivizível, permanece um centro de imputação, devendo responder pelos atos ou omissões internacionalmente ilícitos, de qualquer de seus poderes ou de seus agentes, independentemente da hierarquia”[5]. Como os recursos de direito interno disponíveis, adequados e eficazes foram esgotados, com a manutenção da decisão que viola, na interpretação dos juízes do caso, diretamente os Direitos Humanos, a Responsabilidade Internacional do Estado foi comprometida e ratificada por um ato da mais alta instância do Judiciário nacional. Nesse caso, a desconsideração, por parte dos tribunais, do disposto na convenção no tocante à liberdade de expressão e de consciência, tendo o Chile ratificado a Convenção, torna a conduta passível de avaliação e sentença pelos membros da Corte.
Determinada a Responsabilidade Civil do Estado do Chile, passa-se a observar os pedidos da CIDH, respaldados nos testemunhos de cidadãos chilenos que se consideravam prejudicados pela aferida decisão de manutenção da censura. No que tange aos artigos 1(1) e 2, a Comissão considera que o Estado Chileno foi insuficiente para a resolução da incompatibilidade entre o ordenamento jurídico chileno – cuja previsão de censura existia – e o Pacto de São José da Costa Rica, que protege o Direito Humano à Liberdade de Expressão. É dever do Estado adequar o seu direito interno às normas da CADH, sem escusas de qualquer razão. Especialmente sendo o Chile membro da Convenção desde 1990, não há de se falar em tempo para a mudança. Ao ratificar a CADH, o Estado aceita os imperativos de Direito Internacional aos quais se obriga. Tornam-se, aqui, evidentes duas questões imperativas no cenário internacional, embora não necessariamente expressas na Sentença de 2001: a comum controvérsia entre a adequação das normas de direito interno às normas – imperativas – de direito internacional e o desrespeito ao princípio pro persona, isto é, valerão, sempre, as regras mais benéficas à sociedade.
No direito das gentes, uma regra consuetudinária prescreve que um Estado que ratificou um tratado de direitos humanos deve introduzir em seu direito interno as modificações necessárias para assegurar o fiel cumprimento das obrigações assumidas. Esta regra é universalmente aceita, com respaldo jurisprudencial. Assim, embora o Estado tenha manifestado intenção – tanto no momento de ratificação do Pacto quanto, posteriormente, na tentativa de solução pacífica e amistosa da controvérsia apresentada com a CIDH – em cumprir a norma internacional, não o fez. A não derrogação de uma regra incompatível com a Convenção, bem como a não solução do descompasso entre o ordenamento jurídico e o Direito Internacional tornam a conduta do Estado desviante, ilícita.
Fica claro para os juízes que o Estado não adota as medidas legislativas necessárias para garantir e efetivar os direitos e liberdades estabelecidos na CADH, especialmente no que tange a Liberdade de Expressão, tendo em vista a perpetuação de mecanismos executivos de supressão de ideias (o Consejo de Calificación Cinematográfica) e mecanismos legislativos (Constituição Chilena, artigo 19, XII) de manutenção da censura. Assim, o Estado viola não só o artigo 1.1 da CADH, bem como o artigo 2, tendo em vista que existiam, em seu ordenamento, mecanismos que feriam diretamente os princípios de direitos humanos resguardados pelo Pacto.
Ainda no tocante das violações expressas do direito positivado no Pacto de San Jose da Costa Rica, a CIDH entende que houve violação dos artigos 12 e 13. Quanto ao artigo 13 da mesma CADH, referente à Liberdade de Pensamento e de Expressão, está inserido no descompasso não resolvido entre o ordenamento chileno e as disposições da Corte IDH. Ora, a CIDH argumenta que o artigo 19, inciso XII da Constituição Chilena seria permissivo a censura – em contraposição direta ao direito tutelado no então mencionado artigo 13. Já no que concerne o artigo 12 da Convenção, cujo zelo é a Liberdade de Consciência e Religião, a CIDH traz a relação entre a liberdade consciência e a própria racionalidade e autonomia humana. A liberdade de crença é inferida às escolhas do indivíduo e não a questão moral da totalidade social. Dessa forma, a censura pelas interpretações de crença que um indivíduo reproduz seria o exato oposto à liberdade de consciência religiosa – seria, acima de tudo, a imposição da crença.
O entendimento da Corte IDH é de que o Estado violou o direito à liberdade de expressão. Acatando o posicionamento da CIDH, considerando os testemunhos das vítimas e fazendo a avaliação das provas demonstradas, entende-se que a censura, embora em perfeita harmonia com o Direito Nacional, viola materialmente a norma de Direito Internacional. A proibição da exibição do filme “A Última Tentação de Cristo” por parte da Corte de Apelações de Santiago, ratificada pela Corte Suprema de Justiça, viola o artigo 13 da Convenção, cuja afirmação é de não haver que o exercício da liberdade de pensamento e de expressão não pode estar sujeito à censura prévia. Dada a resolução administrativa de 1996, prejudicando, inclusive, a arrecadação do filme, está caracterizada a censura prévia – que não se inclui, inclusive, nas hipóteses suscitadas pelo artigo 13 (2) e artigo 13 (5), como mencionado na sentença já que a versão cinematográfica de Martin Scorsese foi definida como obra artística de conteúdo religioso sem pretensões propagandísticas. Além disso, no curso do processo perante os tribunais locais e durante o trâmite perante a CIDH, nunca foi invocada a exceção estabelecida neste artigo.
É importante ressaltar que a matéria de liberdade de expressão assume, nesse caso, um entendimento que será, posteriormente, abarcado pelos demais casos de violação ao direito. O entendimento da Corte paira, sobretudo, no caráter dual da liberdade de expressão: o aspecto social e o aspecto individual. A liberdade de expressão não significaria, de forma pífia, a expressão do próprio pensamento (aspecto individual), mas seria a composição desse momentum com o direito e a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideais de toda natureza. A compreensão dual do direito à liberdade de expressão, segundo a Corte IDH, é necessária para lhe conferir a real efetividade, nos termos do artigo 13 da CADH, condição essencial para uma sociedade que se propõe democrática.
A Corte IDH não entende que houve a violação do direito à Liberdade de Consciência e de Religião. A ponderação da questão acontece pela hipótese de violação do artigo 12 da Convenção, proposta pela CIDH. Em suma, a proibição do filme que tinha em seu cerne o conteúdo religioso interferiria na liberdade de consciência religiosa – na interpretação que se dá aquele culto ao produzir tais pensamentos. O Estado, no contraditório, afirma que a censura do filme não violou o direito das pessoas de conservar, mudar, professar e divulgar suas religiões e crenças.
Assim, avalia a Corte IDH que, no caso, a interferência estatal não se refere diretamente ao direito de manifestar e praticar crenças religiosas. A postura do Estado restringir-se-ia ao acesso à exibição qualificada. A censura afeta apenas a quem mantém crenças que se relacionariam com o conteúdo produzido, que já estariam cerceados ao não poder ver o filme, de forma que o cerne da questão seria, de fato, a restrição do direito de Liberdade de Expressão e não, em última análise, de propagação de ideias religiosas.
Sentencia a Corte IDH, consonante a um ideal de Constituição por ela composto, cuja função do Texto é o de proteger o homem, suas instituições e suas crenças de forma que o descuido para com uma imagem consagrada colocaria os valores da nação em perigo. Entende-se o dever de cuidar da informação ou expressão cultural com uma estreita relação com a veracidade dos fatos, deixando de ser informação a deformação histórica. Os juízes entendem, portanto, que a emissão de opinião é um direito, mas desqualificar a realidade cultural não está abrangido ou abarcado por tal determinação.
Esse é um momento curioso dos debates originados pelo caso. O descompasso entre o ordenamento chileno e a CADH pode analisado a partir do princípio pro persona. O princípio tem uma dimensão de preferência normativa e interpretativa o que significa a dever de buscar, sempre, o argumento mais favorável aos sujeitos, aos indivíduos. Quando a Corte IDH sentencia e sanciona o Estado do Chile por descumprir o artigo 13 da CADH, vigora que o mais benéfico é o direito à liberdade de expressão e não a aplicação do artigo da Constituição chilena que autoriza à censura. Os indivíduos têm direito a expressar-se e a receber a informação – a CADH é mais favorável a esta liberdade do que a Constituição, portanto, aplicar-se-á a CADH.
Contudo, sob a mesma ótica interpretativa, impera a Corte IDH no sentido de que a Constituição deve proteger os valores e crenças daquela sociedade ao negar a violação do artigo 12. Nada é mais favorável aos sujeitos do que o documento que lhes garante seus valores. Entende-se, portanto, que a veiculação – a permissão de acesso à informação – é o mais favorável; consonante a essa premissa está certo padrão no que tange o direito à liberdade: no geral, a sanção é feita a posteriori, feita após a violação de algum direito.
Ao determinar que o Estado chileno deve modificar seu ordenamento jurídico interno, a Corte IDH ambiciona a plena efetividade das obrigações legislativas dos Estados Partes na CADH. Isto é, sem dúvida, uma mudança em seu aspecto geral como Corte IDH, especialmente quando comparado com decisões anteriores, como no caso Velasquez Rodrigues vs Honduras, quando a Corte IDH posiciona-se meramente com uma sanção pecuniária. No caso chileno, há tanto uma sanção pecuniária quanto uma sanção de certo teor moral, a mudança no Ordenamento, caracterizando o que se pode chamar de Corte Cançado Trindade: a busca de uma indenização mais justa, consonante uma Corte mais interveniente.
[1] Monitora de direito constitucional e acadêmica de direito da FND-UFRJ. E-mail: tayaracausanilhass@gmail.com
[2] Refiro-me ao atentado ao Teatro Saint-Michael, em Paris, por um grupo fundamentalista cristão enquanto o filme era reproduzido, bem como condenações semelhantes à chilena, isto é, censura em diversos países, como Turquia, México, Argentina e Filipinas.
[3] Foi possível identificar o seu funcionamento pelos sites <http://www.consejodecalificacioncinematografica.cl> e <https://www.chileatiende.gob.cl/servicios/ver/AJ007>, com acesso em 09 de outubro de 2017.
Fonte: Debates Virtuais
Nenhum comentário:
Postar um comentário