Por Thais Silveira Pertille
Conforme o Relatório de Tendências Globais da ONU, no ano de 2014 houve aumento no número de deslocamentos forçados ao redor do globo. Em 2013 o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) anunciou que os “deslocamentos forçados afetavam 51,2 milhões de pessoas, o número mais alto desde a Segunda Guerra Mundial. Doze meses depois a cifra chegou a impressionantes 59,5 milhões de pessoas, um aumento de 8,3 milhões de pessoas forçadas a fugir” (ACNUR, 2015).
Esse crescimento tem razões intrinsicamente ligadas ao início da guerra na Síria, em 2011, “que se transformou no maior evento individual causador de deslocamento no mundo” (ACNUR, 2015). E o Brasil, nos últimos cinco anos, se tornou o principal destino de refugiados sírios na América Latina. Segundo estatísticas do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), “o país abriga atualmente cerca de 1.600 cidadãos sírios reconhecidos como refugiados – o maior grupo entre os aproximadamente 7.600 refugiados que vivem no país, de mais de 80 nacionalidades diferentes” (ACNUR, 2015).
Nesse cenário de violações aos direitos humanos por conta do grave problema sírio, identificado por muitos como a maior crise humanitária dos últimos tempos, o Brasil anuncia agora, às vésperas do dia internacional do refugiado (20 de junho), retrocessos que deixam temerosa a espera pelas próximas decisões políticas que nesse contexto podem surir. É de se enfatizar que o país já esteve em alta conta com o Alto Comissariado das Nações Unidas, tido até mesmo como referência internacional na questão de recepção dos refugiados, especialmente pela edição da Lei 9.474/97 (Estatuto Brasileiro do refugiado), que define institutos e procedimentos de refúgio em uma clara tentativa de contemplação dos problemas concretos enfrentados por aqueles que aqui tentam socorro.
Esse retrocesso foi recentemente noticiado pela BBC Brasil, publicado em seu site no último dia 18, onde consta a informação de que o governo brasileiro suspendeu as negociações que mantinha com a União Europeia, nas quais o país buscava obter recursos internacionais para alojar cerca de cem mil pessoas que deixaram as zonas de conflito na Síria. Consta da notícia que a decisão segue uma nova – e mais restritiva – postura do governo brasileiro quanto à recepção de estrangeiros, em uma ação que pretende se justificar diante da intenção de levar mais segurança às fronteiras.
É inegável que depois do 11 de setembro estadunidense houve intensa mobilização contra povos de cultura árabe, o que piorou significativamente a busca por um olhar mais fraterno sobre a questão dos estrangeiros de um modo geral, realidade que ganhou fôlego com os recentes ataques na França e Bélgica. É possível colocar nesse cenário até mesmo o trágico acontecimento da última semana na cidade de Orlando, a respeito do qual se noticiou a morte de 49 pessoas em uma casa noturna, pois ainda que não tenham sido confirmadas as suspeitas sobre tratar-se ou não de terrorismo, o fato de ter o assassino origem afegã já serviu para que muitos setores da sociedade americana, até mesmo o candidato à presidência Donald Trump, manifestassem-se em tom a corroborar preconceito contra mulçumanos.
E é nessa perspectiva de medo, imersa na guerra ao terror, que a comunidade internacional, liderada pelas potências econômicas eleitas como os principais alvos dos ataques, endurece o tratamento aos refugiados. Não bastasse o receio acerca do impacto econômico e social que a presença do refugiado pode causar, agora passa a ser preciso também desmistificar a figura do estrangeiro terrorista.
Em que pese a realidade brasileira não conviver com atos de terror, tal qual ocorre nos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio, o próprio fenômeno da globalização da informação insere o país na linha dessas discussões. Prova disso é a Lei 13.260/16, que disciplinou o terrorismo, definindo quanto à figura típica disposições investigatórias e processuais, e conceituou organização terrorista, inclusive. Muito disso, é verdade, por conta do Brasil ser sede do evento esportivo mais importante do planeta nos últimos quatro anos, as Olimpíadas do Rio.
Esse ambiente de medo, que passa a ser causa e efeito de medidas políticas desconectadas dos Direitos Humanos, cria cenários de hostilidade e é responsável pela subjugação dos seres identificados como diferentes. E essa desconexão com Outro é extremamente perigosa, pois pode levar à categorização de pessoas menos humanas do que outras, processo exaustivamente visto na história, como se comprova com a escravidão das pessoas negras, evangelização e abusos contra indígenas, subjugação de castas dentro de religiões e também a misoginia. Os judeus na seara do nacional socialismo alemão também viveram essa realidade! Pode-se identificar nesse quadro, então, aquilo que Márcia Tiburi chama de “expressão social do ódio”, tida como “o afeto que se expressa como intolerância projetiva ou, no extremo, declaração de morte ao outro” (2009, p. 32). Em tempos de ódio tão presente no trato social quanto os conflitos que ocasionam a migração forçada de milhares de pessoas, a autora alerta para o fato assustador do ódio que a contemporaneidade presencia: “Não se tem vergonha dele, ele está autorizado hoje em dia e não é evitado” (2016, p. 30).
Não se está a negar a dificuldade que vem enfrentando o Governo em supervisionar distintos fenômenos de migração, muitos ocorridos de forma ilegal, que em alguns casos envolvem crimes de tráfico de drogas, de pessoas e até mesmo de órgãos humanos (SOARES, 2012, p. 151). Ainda assim, tais situações não podem tornar ingerenciável a questão dos refugiados e não pode, de forma alguma, “impedir a garantia de proteção internacional àqueles que dela realmente necessitam” (BARBOSA e HORA, 2007, p. 59).
O Brasil, por conta da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 4º, inciso IX, expressamente prevê a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade dentre os princípios que regem suas relações internacionais. Além disso, a Constituição instituiu, em seu artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana, a qual fundamenta o aspecto legal e moral de todos os esforços que devem ser aplicados com objetivo de dar proteção aos refugiados.
Nessa esteira, a citada Lei 9.474/97 não apenas permite que sejam consideras as peculiaridades de cada caso, como também prevê um devido processo para concessão do refúgio. Luiz Barreto ensina que o regime imposto pela referida Lei “faz do procedimento de reconhecimento da condição de refugiado uma questão técnico-jurídica, que se debate em um devido processo legal” (2010, p. 56).
Salienta-se que o instituto do refugio possui órgão de controle – (CONARE) – a quem cabe deferir os requerimentos para o status de refugiado quando verificados os requisitos dispostos na referida legislação. Diferentemente do instituto do asilo, a concessão do refúgio não é uma decisão política, devendo estar estritamente vinculada às possibilidades dispostas em Lei, e, por isso, interpretadas à luz dos institutos constitucionais referidos. Nas palavras de Flávia Piovesan, quem agora ocupa a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania do governo interino de Michel Temer, a concessão de refugio constitui-se na “garantia de direitos humanos a uma categoria de pessoas tipificadas por elementos caracterizadores próprios, que requerem um tratamento normativo especial” (2016, p. 261).
A norma brasileira promete cooperação internacional entre os povos e garante, especificamente, proteção ao refugiado. Entretanto, a noticiada medida vai de encontro à política humanitária brasileira, outrora tão festejada pelos órgãos internacionais. Faz-se necessário perguntar até que ponto será permitido o retrocesso, justamente quando se imaginava que algumas questões consideradas básicas já estavam superadas. A discussão parecia estar na melhor de forma de receber e proporcionar vida digna aos refugiados, quando, então, é preciso reacender argumentos sobre o porquê dar refúgio a essas pessoas.
O medo, repisa-se, é causa e efeito de medidas políticas nesse sentido. O medo desconecta o ser humano do mundo, o impede de ver, sentir, considerar os diversos cenários a sua volta. O medo reforça o individualismo, depõe contra o comunitarismo e arrebata o amor possível de ser descoberto no Outro. Aprisiona, cria muros, divide e, na esteira de Mia Couto, faz do homem alguém com mais receios do que situações reais a serem receadas.
Será preciso, novamente, partir em busca de reforçar as justificativas pelos direitos dos refugiados no Brasil. Será preciso, novamente, reunir esforços e argumentos que devolvam ao país a possibilidade de buscar ostatus de Estado provedor de políticas humanitárias num cenário de cooperação global. E continua sendo preciso, essa carência nunca cessará, praticar a resistência por um direito menos segregador e que busque materializar os direitos humanos nas políticas dos governos. Ao contrário do que possa parecer o momento revigora os motivos por um humanismo jurídico e incentiva a busca por direito verdadeiramente fraterno.
Notas e Referências:
http://www.acnur.org/t3/portugues/. Acessado em 17/06/2016, às 17:00 horas.
BARBOSA, Luciano Pestana; HORA, José Roberto Sagrado da. A Polícia Federal e a
proteção internacional dos refugiados. Monografia apresentada para conclusão do XX Curso Superior de Polícia. Brasília, 2007.Disponível em: http://docplayer.com.br/10376522-E-a-protecao-internacional-dos-refugiados-a-policia-federal-luciano-pestana-barbosa-jose-roberto-sagrado-da-hora.html Acesso em 17/06/2016
BARRETO, Luiz Paulo Teles Ferreira. Refúgio no Brasil – A proteção brasileira aos
refugiados e seu impacto nas Américas. ACNUR e Ministério da Justiça. Brasil. 2010.
SOARES, Carina de Oliveira. O direito internacional dos refugiados e o ordenamento jurídico brasileiro: Análise da Efetividade da Proteção nacional. Dissertação em Programa de Pós Graduação em Direito, Universidade Federal de Alagoas. 2012.
TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Editora Record. Rio de Janeiro. 2015
Fonte: Empório do Direito
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