Entre os muitos debates envolvendo o assassinato do
general iraniano Qasem Soleimani está a dúvida de se os EUA tinham base legal
para ordenar o ataque aéreo, realizado em solo iraquiano na quinta-feira
passada (02.jan.2020).
"O ataque tinha como objetivo impedir futuros planos de
ataques iranianos", argumentou o governo americano ao defender sua ação.
Quais são, então, as questões-chave envolvendo a legalidade
(ou não) desse ato, segundo a lei internacional?
O que diz a lei
A lei relevante ao tema no Estatuto da ONU permite que um
Estado aja em autodefesa "se ocorrer um ataque armado".
Mas essa definição é, na prática, sujeita à interpretação de
governos, dizem especialistas.
"No caso de Soleimani, os EUA estão alegando ter agido
em autodefesa para impedir ataques iminentes, uma categoria de ação que, se for
verdadeira, é geralmente vista como admissível sob o Estatuto da ONU",
afirma Dapo Akande, professor de Direito Internacional da Universidade de Oxford
e codiretor do Instituto de Ética, Direito e Conflito Armado (ELAC) da
instituição.
No entanto, para Agnes Callamard, relatora especial da ONU
para execuções extrajudiciais, é improvável que a ação dos EUA se enquadre
nessa categoria.
"Os limites para a chamada autodefesa antecipada são
muito estreitos: é necessário que (a necessidade de autodefesa) seja 'imediata,
esmagadora e não deixe outra escolha de meios e não deixe tempo para
deliberações'", ela tuitou. "É improvável que esses requisitos sejam
cumpridos em casos assim."
Um relatório de 2010 da ONU sobre "mortes
alvejadas" afirmava que havia um substancial corpo de acadêmicos que
defendiam o mesmo raciocínio citado por Callamard.
O comunicado inicial do Departamento de Defesa dos EUA sobre
a morte de Soleimani omitia a palavra "iminente" e afirmava que o
ataque aéreo visava impedir ataques futuros iranianos e que Soleimani estaria
"ativamente desenvolvendo planos de alvejar diplomatas e funcionários no
Iraque e pela região".
Em comunicados posteriores, autoridades americanas,
incluindo o presidente Donald Trump, afirmaram que Soleimani planejava
"ataques iminentes".
Elizabeth Warren, pré-candidata democrata à Presidência dos
EUA, rebateu afirmando que "o governo não consegue acertar sua
narrativa".
Há evidências de que o Irã planejava um ataque iminente?
A legalidade do ataque sob a lei internacional pode depender
de os EUA oferecerem evidências desses futuros ataques iminentes, afirma
Akande.
O governo americano não tornou esses detalhes públicos, mas
disse que inteligência a respeito foi compartilhada com membros do Congresso
ligados à política externa do país.
Questionado por um jornalista na terça-feira (7/1) a
respeito dessas ameaças iminentes vindas do Irã, o secretário de Estado Mike
Pompeo citou os episódios que anteciparam o ataque de quinta-feira — o ataque à
embaixada americana do Iraque, que os EUA atribuem ao Irã; ataques de milícias
xiitas a bases iraquianas que abrigam tropas americanas —, mas não mencionou
provas a respeito de ataques futuros.
Há outras justificativas que foram citadas no passado,
segundo Ralph Wilde, especialista em Direito Público Internacional do
University College London.
"Desde o 11 de Setembro (de 2001), os EUA têm adotado a
visão de que a autodefesa pode ser justificada para prevenir ataques de longo
prazo — quando o ataque está sendo planejado, mas não é iminente. O governo
Obama usou esse argumento para justificar ataques com drones", afirma.
E quanto ao consentimento iraquiano?
Outra questão em debate é se os EUA tinham de ter pedido
consentimento do Iraque para realizar um ataque dentro de seu território.
O governo iraquiano afirmou que o episódio foi "uma
flagrante violação da soberania" do país, e o Parlamento aprovou uma resolução
(não vinculante) pedindo que as tropas americanas deixem o Iraque — algo que o
governo americano rejeita fazer até o momento.
Há cerca de 5 mil militares no país, sobretudo em tarefas de
apoio às tropas iraquianas e no combate ao grupo autodenominado Estado
Islâmico.
Os EUA podem argumentar que sua presença ali já deixa
implícito algum tipo de consentimento à sua ação no país, dando-lhes o direito
de proteger seus interesses e cidadãos dentro do Iraque.
Mas Akande argumenta que, na prática, os termos do acordo
entre o Iraque e as tropas americanas não se estendem à possibilidade de se
executar um ataque como o que matou Soleimani.
É permitido alvejar pontos de relevância cultural?
No domingo, Trump ameaçou Teerã com ataques a 52 pontos de
interesse iranianos, "alguns de alto nível e muito importantes ao Irã e à
cultura iraniana".
O chanceler iraniano, Javad Zarif, afirmou que um eventual
ataque a um patrimônio cultural iraniano constituiria um crime de guerra.
"(A ameaça de Trump) mostra um cruel desprezo pelo
estado de direito internacional", declarou Andrea Prasow, da organização
Human Rights Watch.
O governo dos EUA tem insistido que seus ataques ocorreriam
dentro da lei.
Mas um eventual ataque contra um patrimônio cultural
violaria diversos tratados internacionais.
A Convenção de Haia de 1954 pela Proteção de Propriedade
Cultural protege sítios culturais, em reação à destruição de patrimônio
cultural ocorrido na Segunda Guerra Mundial, e tem os EUA como signatários.
Em 2017, a ONU aprovou uma resolução em reação a ataques do
Estado Islâmico (EI), condenando "a destruição ilegal de patrimônio
cultural, incluindo de locais e artefatos religiosos".
Os EUA estiveram entre os mais duros críticos do EI quando o
grupo extremista alvejou a cidade histórica síria de Palmira, em 2015, e quando
o grupo Talebã demoliu os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, em 2001.
Em 2016, pela primeira vez, o Tribunal Penal Internacional
fez uma condenação com base em crimes contra patrimônio histórico. Ahmad Al
Faqi Al Mahdi, ligado à Al-Qaeda, foi considerado culpado pelo "crime de
guerra de intencionalmente direcionar ataques contra edificações religiosas e
históricas" em Timbuktu, no Mali, em 2012. Al Mahdi foi condenado a nove
anos de prisão.
Os EUA não são parte do Tribunal Penal Internacional, mas
são signatários de outros acordos de proteção a propriedade cultural — e
qualquer ataque do tipo representaria uma significativa reversão.
Fonte: BBC
Nenhum comentário:
Postar um comentário