Por Tatiana Cardoso Squeff
No mundo atual, cerca de 968 milhões de pessoas são migrantes, isto é, são pessoas que saíram do seu local de origem em direção à outra localidade pelos mais variados motivos, desde perseguições por motivo de religião ou opinião política até pela busca por oportunidades de emprego. Todavia, 740 milhões, não chegam a ultrapassar as fronteiras nacionais (ONUBR, 2017a), sendo chamados de deslocados internos. Forte nisso, aqueles que realmente buscam outro país são 228 milhões de pessoas – número este que é quase 50% maior do que aquele encontrado nos anos 2000 (Publico, 2017).
Quanto ao destino, mais de 60% das pessoas que imigraram desde a virada do século foram para a Ásia (80 milhões) e para a Europa (78 milhões) (Publico, 2017). Apesar disso, as maiores comunidades de migrantes ainda estão concentrados em países com “alto rendimento econômico”, como os Estados Unidos, com 50 milhões de migrantes, Arábia Saudita, Alemanha e Rússia, com cerca de 12 milhões cada, e, em quinto lugar, o Reino Unido, com nove milhões de migrantes (Publico, 2017).
Quanto à origem, os países que mais geram migrantes são Síria, Afeganistão, Iraque e Eritreia (G1, 2015), representando a continuidade da tendência de deslocamento de pessoas oriundas de países do Sul para o Norte (45%) quando em comparação de Sul para Sul (35%) e Norte para Norte (17%) (ONUBR, 2017a) – tendência essa, todavia, que não se confirma no contexto latino-americano, onde o tipo de migração mais corriqueiro é o intra-regional. Consoante a Organização Internacional para Migrações (OIM), “a migração entre países latino-americanos e caribenhos teve alta de 51% entre 2009 e 2014, com 36 milhões de migrantes (ONUBR, 2017a). Desse total, 64% escolheram migrar para países da região.
Em 2015, a OIM estimou que, “a nível regional, quando desconsiderada a origem dos migrantes”, a Argentina era o destino mais procurado, contando com cerca de 2,1 milhões de migrantes, seguido pela Venezuela, com 1,4 milhão de migrantes e pelo Brasil, com 713 mil (ONUBR, 2017b). Entretanto, em razão da Venezuela, esses números sofreram alterações, particularmente pelo êxodo de cerca de “2,3 milhões de venezuelanos para países vizinhos” nos últimos quatro anos – isso sem contar os milhões de emigrantes que estavam lá domiciliados e que retornaram para suas nações de origem ou de deslocaram para outras localidades (RFI, 2018).
Contudo, em que pese a variação do fluxo migratório de venezuelanos que adentraram o Brasil, de fato, ter aumentado exponencialmente entre 2015 e 2018, chegando a +1.360%, “perdendo” apenas para Peru (+14.975%) e Colômbia (+1.686%), importa salientar que o Brasil não é o país que mais recebe migrantes – sejam eles venezuelanos ou não (GORTÁZAR, 2018). Particularmente em relação aos venezuelanos, o Estado brasileiro recebeu apenas 2% do total de migrantes que deixaram o seu país até julho de 2018, estando a maioria situada na Colômbia, Equador, Peru, Chile e Argentina (PASSARINHO, 2018).
E mesmo frente a esses números, há atualmente no país uma ideia fixa de que se estaria recebendo um número muito elevado de pessoas originárias de outros países e que isso seria de alguma forma prejudicial ao brasileiro, fomentando a discriminação e o aumento da xenofobia para com o imigrante. Logo, não só o irrisório número de migrantes que adentram e permanecem no país passa desapercebido, como o brasileiro parece olvidar das suas próprias origens, isto é, de que a sua nação foi forjada a partir da chegada e do estabelecimento permanente de inúmeros grupos oriundos de outras localidades mundanas.
Ademais, esquecem que o direito basilar de ir, vir e ficar engloba a migração para além das fronteiras nacionais. O direito (humano) de migrar, não é singular, mas sim formado a partir de um binômio: se toda pessoa tem o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive do próprio, como prevê o artigo 22(2) da Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969), ela também tem o direito de entrar em outro. Afinal, não existe um limbo fronteiriço que a pessoa possa restar quando da saída de sua nação.
De toda sorte, o Brasil não é o único Estado que passa por situações como essa. A hipervulnerabilidade que os imigrantes enfrentam no país é igualmente relatada por outras nações. E foi justamente com base nesse contexto de grande mobilidade e de violação de direitos, é que surge na Assembleia Geral das Nações Unidas, o debate para a adoção do “Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular”, cujo objetivo era tornar essas migrações mais dignas, evitando que os indivíduos que deixaram o seu país sejam criminalizados por migrarem ou tratados de maneira desumana ou degradante pelos países de destino (ONU NEWS, 2018).
O documento de 30 páginas, finalizado em 13 de julho de 2018, após mais de 18 meses de negociação, e aprovado na Conferência Intergovernamental de Marrakesh, no Marrocos, entre os dias 10 e 11 de dezembro de 2018, tem como pressuposto a Carta da ONU, a qual coloca a proteção dos direitos humanos como um dos objetivos da própria Organização, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em 2018 completou 70 anos, além de diversos outros tratados de direitos humanos. Logo, ele salienta a necessidade de os Estados respeitarem os direitos humanos dos migrantes em todos os momentos do percurso migratório.
Ainda, o Pacto busca fomentar a cooperação entre as nações, ressaltando que não se trata de uma situação que se possa combater singularmente, sendo imperioso o diálogo com os demais países para que se possa melhorar a situação de todos os envolvidos, isto é, dos Estados receptores e dos próprios migrantes. Assim, o documento não tem como condão flexibilizar a soberania estatal, mas fortificá-la através da cooperação intergovernamental, para que sejam adotadas medidas que garantam uma migração segura, ordenada e regular/contínua. Afinal, uma medida mais restritiva de um Estado tende apenas a piorar a situação dos demais.
Para tanto, são listados 23 objetivos no documento, voltados a nortear as migrações internacionais (UNGA, 2018), dentre os quais se salienta a sugestão de os Estados participantes gerenciar humanamente as fronteiras e garantir a publicidade dos caminhos para a migração regular, a fim de que os procedimentos sejam conhecidos por todos, evitando-se, assim, o tráfico de migrantes. Ademais, aconselha que os Estados invistam na qualificação de pessoas que lidam com migrantes, bem como se comprometam para a plena inclusão desses indivíduos nas suas sociedades, reconhecendo as suas habilidades, de modo a coibir a sua vulnerabilização. Além disso, recomenda aos Estados que estes se esforcem para minimizar fatores que podem dar origem a fluxos migratórios transnacionais, inclusive facilitando o retorno de indivíduos.
Desta feita, nota-se que esse documento, o qual conta, inclusive, com um mecanismo de acompanhamento pelo qual serão realizados encontros a cada quatro anos, busca efetivamente mitigar os fatores que geram as migrações em primeiro lugar, bem como se volta à redução das dificuldades normalmente enfrentadas pelos migrantes no trajeto e no país de destino, ressaltando que estes podem contribuir para a sociedade na qual ele se encontra(rá), sem prejudicar o desenvolvimento sustentável local, nacional, regional ou mundial.
Todavia, em que pese importantíssimo para direcionar a conduta dos países no que diz respeito à geração e à recepção/integração de migrantes, destaca-se que o Pacto em comento não passa de uma soft law, ou seja, trata-se de um documento sem força de lei, o qual não gerará obrigações jurídicas, servindo apenas como uma sugestão para os 164 Estados que assinaram o documento em Marrakesh (Masaiti; Keaten, 2018).
E muito embora não seja vinculante, grande relevo tem-se dado aos países que se recusaram a assiná-lo. Dentre eles estão República Dominicana, país com histórico de violação de direitos de migrantes na Corte Interamericana, Estados Unidos, forte no recente influxo centro-americano em direção ao país e pelo projeto político em vigor no país (‘America First’); Itália, Suíça, Áustria, Hungria, Latvia, Bulgária, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Israel – estes muito afetados pela chegada de imigrantes provenientes do Oriente Médio e/ou pela ascensão da extrema-direita; além de Austrália, país que, embora tenha contribuído para a confecção do documento, recorrentemente encontra dificuldades em recepcionar migrantes.
O Brasil, porém, não só participou da conferência no Marrocos, como também aceitou o texto, o qual se coaduna com a promulgação da LF 13.445 em 2017 – a Nova Lei de Migração – e com as atuais práticas acolhedoras do Estado brasileiro (EBC, 2018). Se, por ventura, o Estado brasileiro decida desvincular-se do referido Pacto no futuro, este estará agindo de maneira dissonante à jurisprudência interamericana sobre migrações internacionais justamente por desconsiderar o ‘direito humano de migrar’ e a própria necessidade de cooperação que hoje é essencial para fortalecer os Estados que perpassam por influxos migratórios e evitar violações direitos humanos dos migrantes.
Em uma última palavra, de fato, o país não precisa seguir o documento – ele é opcional. Entretanto, se optar pelo desligamento, o Brasil desconsiderará toda a evolução nacional, regional e internacional sobre o tema, podendo haver consequências jurídicas (no plano constitucional e convencional) e político-sociais (a nível doméstico e internacional) que serão mais prejudiciais para o Estado do que a sua simples permanência.
Referências
EBC. Chanceler defende permanência do Brasil no Pacto Global de Migração. Agência Brasil, Brasília, 11 dez. 2018. Disponível em: agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2018-12/chanceler-defende-permanencia-do-brasil-no-pacto-global-de-migracao. Acesso 13.12.2018.
G1. Entenda a situação de países de onde saem milhares de imigrantes à Europa. G1, Rio de Janeiro, 04 nov. 2015. Disponível em: g1.globo.com/mundo/noticia/2015/08/entenda-situacao-de-paises-de-onde-saem-milhares-de-imigrantes-europa.html . Acesso 13.12.2018.
GORTÁZAR, Naiara Galarraga. Êxodo Venezuelano: Onde estão esses 7% de venezuelanos forçados a fugir. El País, Madrid, 30 ago. 2018. Disponível em: brasil.elpais.com/brasil/2018/ 08/26/internacional/1535307553_501641.html. Acesso 13.12.2018.
MASAITI, Amira; KEATEN, Jamey. 164 countries sign non-binding UN migration pact amid international controversy. Global News, Toronto, 10 dec. 2018. Disponível em: globalnews.ca/news/4747488/un-migration-pact-signed. Acesso 13.12.2018.
OEA. Convenção Americana de Direitos Humanos. San José, 1969. Disponível em: www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso 13.12.2018.
ONUBR. Migração entre países latino-americanos deve continuar subindo, diz OIM. Portal Nações Unidas no Brasil, Brasília, 20 abr. 2017a. Disponível em: nacoesunidas.org/migracao-entre-paises-latino-americanos-deve-continuar-subindo-diz-oim. Acesso em 13.12.2018.
_________. População de migrantes no Brasil aumentou 20% no período 2010-2015, revela agência da ONU. Portal Nações Unidas no Brasil, Brasília, 14 dez. 2017b. Disponível em: https://nacoesunidas.org/populacao-de-migrantes-no-brasil-aumentou-20-no-periodo-2010-2015-revela-agencia-da-onu. Acesso 13.12.2018.
ONU NEWS. Saiba tudo sobre o Pacto Global para Migração. ONU News, s/l, 8 dez. 2018. Disponível em: news.un.org/pt/story/2018/12/1650601. Acesso 13.12.2018.
PASSAARINHO, Nathalia. Brasil recebe apenas 2% dos 2,3 milhões de venezuelanos expulsos pela crise. BBC News Brasil, 21 ago. 2018. Disponível em: www.bbc.com/portuguese/brasil-45251779>. Acesso 13.12.2018.
Publico. ONU: Número de migrantes aumenta 50% desde 2000 e atinge 258 milhões em2017. Jornal Público, Maia, 19 dez. 2017. Disponível em: www.Publico.pt/2017/12/19/mundo/noticia/numero-de-migrantes-aumenta-50-desde-2000-e-atinge-258-milhoes-em-2017-1796495. Acesso 13.12.2018.
RFI. Falta pouco para crise migratória na América Latina ficar tão grave quanto na Europa. Rádio França Internacional, São Paulo, 30 ago. 2018. Disponível em: br.rfi.fr/europa/20180830-falta-pouco-para-crise-migratoria-na-america-latina-ficar-tao-grave-quanto-na-europa. Acesso 13.12.2018.
UNGA. Doc. n. A/CONF.231/3. New York, 30 jul. 2018. Disponível em: undocs.org/en/A/CONF.231/3. Acesso 13.12.2018.
Fonte: Conjur
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