"Hoje estamos no limiar de um grande evento tanto na existência da
ONU quanto da humanidade". Com estas palavras, a diplomata e
ex-primeira-dama americana Eleanor Roosevelt apresentou a Declaração Universal
dos Direitos Humanos para a Organização das Nações Unidas.
Era 1948 e os estados-membros da
ONU, determinados em impedir que os horrores da Segunda Guerra Mundial se
repetissem, estavam cheios de idealismo e aspirações.
A declaração universal prometia,
entre outras coisas, o direito à vida, o direito a não ser torturado e o
direito de pedir asilo contra a perseguição. Apenas um dia depois de sua
ratificação, os países adotaram também a As Convenções de Genebra, uma série de
tratados elaborados para proteger civis durante guerras e garantir o direito de
equipes médicas trabalharem livremente em zonas de conflito.
Nas décadas desde 1948, muitos
dos princípios da Declaração foram preservados nas leis internacionais, com a
convenção de refugiados de 1951 e a proibição absoluta da tortura - a profecia
de Roosevelt de que a declaração se tornaria "a carta magna internacional
de todos os homens em todos os lugares" parecia estar se cumprindo.
Mas quase 70 anos depois, os
ideais dos anos 1940 começam a parecer batidos. Enfrentando ondas de milhares
de migrantes e refugiados em suas fronteiras, muitos países europeus parecem
relutantes em honrar sua obrigação de oferecer asilo.
Pelo contrário, seus esforços -
desde a cerca na Hungria até o debate britânico sobre aceitar ou não algumas
dúzias de jovens refugiados afegãos - parecem mais focados em manter as pessoas
afastadas.
Do outro lado do Atlântico, o
presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, fala em sancionar a
controversa técnica de interrogatório conhecida como waterboarding, uma
simulação de afogamento considerada tortura.
Questionado sobre o tema, ele
afirmou: "Eu faria muito pior... Não me diga que a tortura não funciona...
acredite em mim, ela funciona".
Na Síria e no Iêmen, civis são
bombardeados ou morrem de fome, e os médicos e hospitais que tentam tratá-los
têm sido atacados por todos os lados dos conflitos.
Por isso, funcionários da ONU e
de outras organizações de direitos humanos já se perguntam: qual será o futuro
desse tipo de acordo internacional?
'Corrida ao fundo do poço'
Em Genebra, onde estão as sedes
do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, da Agência de
Refugiados da ONU e do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, já se fala em um
mundo "pós-direitos humanos".
"Não se pode negar que
estamos enfrentando desafios enormes: o retrocesso que vemos no respeito aos
direitos na Europa ocidental e possivelmente também nos Estados Unidos",
diz Peggy Hicks, diretora de programas dos Direitos Humanos.
Virando a esquina, na sede da
Cruz Vermelha há provas de que esses desafios são reais.
Uma pesquisa de opinião realizada
durante o verão europeu pela organização mostra uma tolerância maior à tortura.
Entre as pessoas entrevistadas, 36% acreditavam que era aceitável torturar
combatentes inimigos capturados para obter informações.
Além disso, menos da metade dos
entrevistados que pertenciam aos cinco países membros permanentes do conselho
de segurança (EUA, Reino Unido, China, Rússia e França) disseram ser errado
atacar áreas muito populosas, sabendo que civis seriam mortos.
Mais de 25% deles disseram achar
que impedir o acesso de civis a comida, água e remédios é parte inevitável da
guerra.
Para o presidente do Comitê
Internacional da Cruz Vermelha, Peter Maurer, os dados são preocupantes.
"Até na guerra, todos merecem ser tratados de maneira humana", diz.
"Usar a tortura só dá início
a uma corrida até o fundo do poço. Tem um impacto devastador nas vítimas e
também brutaliza sociedades inteiras por gerações."
Desconexão
Mas quantas pessoas fora da
"bolha" de Genebra estão ouvindo?
Peggy Hicks, da ONU, tenta
explicar por que as atitudes das pessoas em relação aos direitos humanos podem
estar mudando.
"Quando confronto o mal que
vemos no mundo de hoje, não me surpreende que as pessoas que não pensaram muito
profundamente sobre isso (a tortura) às vezes tenham convicção de que isso pode
ser uma boa ideia."
Mas na Europa e nos Estados
Unidos, líderes de opinião tradicionais - desde políticos até funcionários da
ONU - têm sido acusados de serem elitistas e desconectados da realidade. Sugerir
que algumas pessoas simplesmente não refletiram o suficiente sobre tortura para
entender que é errado pode ser parte do problema.
"Eu acho que a comunidade
dos direitos humanos - eu mesma incluída - tem o problema de não usar uma
linguagem que se conecta com as pessoas num diálogo verdadeiro", admite
Hicks.
"Precisamos fazer melhor, eu
realmente acho isso."
A ideia que ninguém em Genebra
parece querer enfrentar, no entanto, é a de que os princípios adotados nos anos
1940 podem simplesmente não ser mais tão relevantes para as pessoas no mundo
atual.
Eles parecem pensar que os
princípios continuam sendo válidos, só não são respeitados o suficiente.
"Não estamos buscando um
mundo de fantasias imaginário", diz Tammam Aloudat, médico da organização
humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF).
"Estamos buscando a
manutenção das garantias básicas de proteção e assistência a pessoas afetadas
por conflitos."
'Visão imoral'
A preocupação de Aloudat é que a
mudança de atitude, especialmente em relação a profissionais de saúde
trabalhando em zonas de guerra, acabe com essas garantias básicas.
Recentemente, perguntaram a ele
por que a equipe do MSF não diferencia - na hora de atender os feridos - quais
são civis e quais podem ser combatentes que, se forem tratados, podem retornar
à batalha.
"Isso é absurdo. Qualquer
pessoa desarmada merece tratamento... Não temos autoridade moral para julgar
suas intenções no futuro."
Seguindo essa lógica, diz ele,
podem acabar exigindo que médicos e outros profissionais de saúde recusem
tratamento ou alimentação a crianças de países em conflito, para evitar que
elas se tornem combatentes ao crescer.
"É uma visão de mundo
ilegal, antiética e imoral", afirma.
"Aceitar a tortura, a
privação de mantimentos, o cerco a cidades e outros crimes de guerra como
coisas inevitáveis - ou mesmo 'ok', caso elas resolvam o conflito rapidamente -
é horripilante. Eu não gostaria de estar em um mundo em que essa fosse a
regra."
Peggy Hicks, por sua vez, alerta
para o excesso de críticas às leis atuais de direitos humanos sem que haja
alternativas genuínas a elas.
"Quando buscamos alternativas,
não há nenhuma. Mesmo que o sistema atual tenha problemas, se você não tem nada
para substitui-lo, é melhor ter cuidado ao tentar destrui-lo."
Fonte: BBC
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