No dia 13 de abril de 2018, uma sexta-feira, o Estado de Roraima ingressou com Ação Civil Originária em face da União. A demanda foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF), levando para as instâncias judiciais a temática da recepção de migrantes em situação de vulnerabilidade em territórios de fronteira, como é o caso do Estado Autor, que descreve fatos, essencialmente ligados ao excesso de pessoas vindas da Venezuela – quase 10% da população do Estado, segundo a ação – e as consequências para os serviços públicos desse número, segundo o Autor, significativo de migrantes em seu território.
Para tanto, traz notícias sobre a concentração dos migrantes venezuelanos em Roraima, com pequenas transferências para São Paulo e Cuiabá, sobre o suposto aumento de criminalidade, sobre questões ligadas à saúde pública. Ao final, em seus pedidos busca exigir que a União interfira de forma mais efetiva para garantir que os impactos orçamentários não recaiam exclusivamente sobre o governo estadual. Porém, além disso, o Estado Autor requer o fechamento temporário da fronteira com a Venezuela, ou, a proibição (mesmo que parcial) do ingresso de refugiados no país. E esse pedido preocupa, pois, se atendido, levará à violação de normas internas e internacionais.
O pedido está assim redigido:
“Para que a União seja compelida a fechar temporariamente a fronteira Brasil-Venezuela a fim de impedir que o fluxo imigratório desordenado produza efeitos mais devastadores aos brasileiros e estrangeiros residentes no Estado de Roraima; ou, que a União seja compelida a limitar o ingresso de refugiados venezuelanos a uma quantidade compatível com a capacidade do Estado Brasileiro de acolher e prover as necessidades básicas de tais estrangeiros, até que sejam minimizados e corrigidos os impactos sociais e econômicos decorrentes dos milhares de estrangeiros que estão no Estado de Roraima”.
Esse artigo não vai analisar os outros pedidos, não por não preocuparem, mas por esse ser o mais descompassado com as normas constitucionais e de direitos humanos, além de que os demais pedidos parecem se ligar a disputas eleitorais locais, que não são objeto de debate nesse momento. De fato, os demais pleitos se vinculam a exigir da União que ampare o Estado, enviando verbas e apoio para auxílio nas demandas vinculadas à chegada dos migrantes.
O Estado de Roraima não pode alegar que o fluxo de migração por suas fronteiras é algo surpreendente, a localização fronteiriça do seu território exige que os administradores públicos estejam preparados para uma contingência como essa. Certamente não se exige, com essa afirmação, que o Estado deveria contar com todos os recursos financeiros necessários, porém, a administração pública deveria ter estabelecido um plano para situações como essa, pois está em região de fronteira. Nesse sentido, o Estado teria que apresentar soluções para acolhimento, a partir das quais poderia buscar a ajuda da União. No entanto, não é o que se percebe no caso, indicando falta de planejamento para situações emergenciais como a indicada.
Também deve ser dito que o Brasil não é escolhido como destino da maioria dos venezuelanos migrantes. A Colômbia recebeu 600 mil migrantes da Venezuela no mesmo período em que o Brasil recebeu algo em torno de 50 mil, conforme relatórios do ACNUR/ONU indicando que mais de 1 milhão de venezuelanos deixaram o país entre 2014 e 2017, em direção também aos Estados Unidos, Espanha, Peru, México, Panamá, Costa Rica.. Logo, por mais complexa que a questão possa parecer, ela é bem menos relevante do que o que acontece em outros países vizinhos. Reforçando a necessidade de planejamento e construção de políticas públicas migratórias, incluindo a temática dos refugiados, a serem tratados numa política própria.
O pedido busca fechar as fronteiras ou impedir a entrada de refugiados venezuelanos. Independentemente da questão de competência, que não é do STF nesse caso, pois a política internacional é de competência do Presidente da República (art. 84, VII, da CF), a demanda do Estado de Roraima ataca as bases da proteção dos direitos humanos, sem registrar avanços nas políticas públicas migratórias.
Limitar a entrada de refugiados vai contra a lei 9474/97, além de violar a Constituição Federal, que determina no seu art. 1o a proteção da dignidade e, no art. 4o, a garantia da prevalência dos direitos humanos, como princípio regente das ações do país nas suas relações internacionais.
Salta aos olhos, no entanto, a ausência na ação de pedido para exigir que o Poder Executivo Federal regulamente o visto de acolhida humanitária, trazido pela Lei 13.445/17 (a Nova Lei de Migração – NLM), mas totalmente negligenciado pelo Decreto 9199/17. Com o visto de acolhida humanitária regulamentado, o cenário poderia ser positivo inclusive para o migrante que teria documentação para se manter no país e buscar também seus direitos perante as autoridades nacionais, não permitindo que enfrente situação de indocumentação, o que o expõe a um enorme número de violações a direitos.
Negar a entrada de migrantes, sem indicar alternativas para o solicitante de ingresso é violação a direitos humanos, ao direito constitucional e as mais básicas formas de convivência humana, além de representar decisão que pode fortalecer governos ditatoriais, pois seus nacionais terão que se acomodar à realidade em que estão inseridos, podendo diminuir em muito a luta por direitos naquele país também. Visto de todos os ângulos, o que busca a ação, se bem sucedida, por mais que haja alegação de se enfrentar em Roraima um Estado de Coisas Inconstitucional, conceito que ainda merece cautela ao ser avaliado e aplicado, poderá gerar um cenário de não aplicação da Constituição, tanto no que toca à competência quanto no que diz respeito a direitos fundamentais. A ação judicial é infundada, o que se exige é ação no mundo real, para se construírem políticas públicas migratórias e para refúgio, que possam permitir que migrante/refugiado seja recebido como sujeito de direitos, independentemente de onde e por quê venha ao país. Isso poderá, inclusive, aumentar a qualidade de vida dos brasileiros, que terão políticas públicas claras e aplicadas independentemente dos humores político-eleitorais.
Luís Renato Vedovato – doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Pesquisador Associado FAPESP do Observatórios das Migrações em São Paulo. Membro do Observatório de Direitos Humanos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Rosana A. Baeninger – professora colaboradorado Departamento de Demografia do IFCH- Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População - NEPO/UNICAMP. Coordenadora do Observatório das Migrações em São Paulo.
Fonte: JOTA
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