Os ideais mais elevados de Locke, Hume e Kant foram
propostos mais de um século antes deles por Zera Yacob, um etíope que viveu
numa caverna. O ganês Anton Amo usou noção da filosofia alemã antes de ela ser
registrada oficialmente. Autor defende que ambos tenham lugar de destaque em
meio aos pensadores iluministas.
Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e
universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no
secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do
Iluminismo.
A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de
distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua
reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em
grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação
à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos
de romantismo e emoção.
Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no
"Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca
de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e
terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em
1793.
Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder
ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me
assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17:
Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob.
Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola
perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante,
ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar
retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento
crítico ("qiné") por quatro anos.
Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola,
recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã
ortodoxa, majoritária no país.
Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei
Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial
da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a
partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia
declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o
denunciaram para o rei.
Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de
Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio
Tekezé.
Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela
caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse
local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como
Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais
tarde, em "Walden" (1854).
Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632,
Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos
no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia
racionalista.
Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os
seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a
escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou
essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a
existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional.
Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram
concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope
de 1630 a 1632.
LIVROS
A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua
obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667
por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma
"Hatäta" de orientação mais prática.
Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar
do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo
professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como
parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada
pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba.
O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao
norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em
inglês.
A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por
volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos
filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael.
Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão
e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado
pela filosofia arábica e as discussões etíopes.
Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos
por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e
videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma
investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que
todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor.
Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o
francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é
que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra
"Meditações Metafísicas" (1641).
Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a
Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados.
As "Meditações" de Descartes foram dedicadas
"ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris",
e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não
morre com o corpo e de que Deus existe".
Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais
agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao
pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta
radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?"
Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a
verdadeira:
"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e
aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...)
Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua
própria fé; mas a verdade é uma só".
Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a
subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador
universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de
Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora
perspectivas existencialistas:
"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem
me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse
eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e
da consciência de mim mesmo. Quem me criou?".
IDEIAS AVANÇADAS
No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a
leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o
judaísmo e as religiões indianas.
Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria,
fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam
gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres
são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que
"constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica
a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor".
Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva
da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses
ideais.
Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre
chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma
empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de
Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser
serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no
casamento".
Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu
um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do
Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não
possuir determinados entendimentos".
E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo
de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário,
a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo
dela".
Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente:
como par intelectual do filósofo.
Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo
no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que
"possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim,
ele propõe um argumento universal contra a discriminação:
"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e
todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à
vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos
ensina que esse tipo de discriminação não pode existir".
As palavras "todos os homens são iguais" foram
escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter
empunhado sua pena.
E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a
todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições
Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder
absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio
negreiro transatlântico.
Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia
de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao
Iluminismo.
Os ideais do Iluminismo são a base de nossas democracias e
universidades no século 21: a crença na razão, na ciência, no ceticismo, no
secularismo e na igualdade. De fato, nenhuma outro período se compara à era do
Iluminismo.
A Antiguidade é inspiradora, mas está a um mundo de
distância das sociedades modernas. A Idade Média é mais razoável do que sua
reputação sugere, mas ainda assim é medieval. A Renascença foi gloriosa, mas em
grande medida graças ao seu resultado: o Iluminismo. O romantismo veio como reação
à era da razão, mas os ideais dos Estados modernos não se expressam em termos
de romantismo e emoção.
Segundo a história mais contada, o Iluminismo tem origem no
"Discurso do Método" (1637), de René Descartes, continuou por cerca
de um século e meio com John Locke, Isaac Newton, David Hume, Voltaire e Kant e
terminou com a Revolução Francesa, em 1789 —talvez com o período do terror, em
1793.
Mas e se a história estiver errada? E se o Iluminismo puder
ser associado a lugares e pensadores que costumamos ignorar? Tais perguntas me
assombram desde que topei com o trabalho de um filósofo etíope do século 17:
Zera Yacob (1599-1692), também grafado Zära Yaqob.
Yacob nasceu numa família pobre numa propriedade agrícola
perto de Axum, a lendária antiga capital do norte da Etiópia. Como estudante,
ele impressionou seus professores e foi enviado a uma nova escola para estudar
retórica ("siwasiw" em ge'ez, a língua local), poesia e pensamento
crítico ("qiné") por quatro anos.
Em seguida, estudou a Bíblia por dez anos em outra escola,
recebendo ensinamentos dos católicos e dos coptas, bem como da tradição cristã
ortodoxa, majoritária no país.
Na década de 1620, um jesuíta português convenceu o rei
Susenyos a converter-se ao catolicismo, que não tardou a virar religião oficial
da Etiópia. Seguiu-se uma perseguição aos livres-pensadores, mais intensa a
partir de 1630. Yacob, que nessa época lecionava na região de Axum, havia
declarado que nenhuma religião tem mais razão que outra —e seus inimigos o
denunciaram para o rei.
Yacob fugiu, levando apenas um pouco de ouro e os Salmos de
Davi. Viajou para o sul, para a região de Shewa, onde se deparou com o rio
Tekezé.
Ali encontrou uma área desabitada com uma "bela
caverna" no início de um vale. Construiu um muro de pedra e viveu nesse
local isolado para "encarar apenas os fatos essenciais da vida", como
Henry David Thoreau descreveria uma vida também solitária, dois séculos mais
tarde, em "Walden" (1854).
Por dois anos, até a morte do rei, em setembro de 1632,
Yacob permaneceu na caverna como ermitão, saindo apenas para buscar alimentos
no mercado mais próximo. Na caverna, ele alinhavou sua nova filosofia
racionalista.
Ele acreditava na primazia da razão e afirmava que todos os
seres humanos, homens e mulheres, são criados iguais. Yacob argumentou contra a
escravidão, criticou todas as religiões e doutrinas reconhecidas e combinou
essas opiniões com sua crença pessoal em um criador divino, asseverando que a
existência de uma ordem no mundo faz dessa a opção mais racional.
Em suma: muitos dos ideais mais elevados do Iluminismo foram
concebidos e resumidos por um homem que trabalhou sozinho em uma caverna etíope
de 1630 a 1632.
LIVROS
A filosofia de Yacob, baseada na razão, é apresentada em sua
obra principal, "Hatäta" (investigação). O livro foi escrito em 1667
por insistência de seu discípulo, Walda Heywat, que escreveu ele próprio uma
"Hatäta" de orientação mais prática.
Hoje, 350 anos mais tarde, é difícil encontrar um exemplar
do trabalho de Yacob. A única tradução ao inglês foi feita em 1976 pelo
professor universitário e padre canadense Claude Sumner. Ele a publicou como
parte de uma obra em cinco volumes sobre a filosofia etíope, que foi lançada
pela nada comercial editora Commercial Printing Press, de Adis Abeba.
O livro foi traduzido ao alemão e, no ano passado, ao
norueguês, mas ainda é basicamente impossível ter acesso a uma versão em
inglês.
A filosofia não era novidade na Etiópia antes de Yacob. Por
volta de 1510, "The Book of the Wise Philosophers" (o livro dos
filósofos sábios) foi traduzido e adaptado ao etíope pelo egípcio Abba Mikael.
Trata-se de uma coletânea de ditados de filósofos gregos pré-socráticos, Platão
e Aristóteles por meio dos diálogos neoplatônicos, e também foi influenciado
pela filosofia arábica e as discussões etíopes.
Em sua "Hatäta", Yacob critica seus contemporâneos
por não pensarem de modo independente e aceitarem as palavras de astrólogos e
videntes só porque seus predecessores o faziam. Em contraste, ele recomenda uma
investigação baseada na razão e na racionalidade científica, considerando que
todo ser humano nasce dotado de inteligência e possui igual valor.
Longe dele, mas enfrentando questões semelhantes, estava o
francês Descartes (1596-1650). Uma diferença filosófica importante entre eles é
que o católico Descartes criticou explicitamente os infiéis e ateus em sua obra
"Meditações Metafísicas" (1641).
Essa perspectiva encontra eco na "Carta sobre a
Tolerância" (1689), de Locke, para quem os ateus não devem ser tolerados.
As "Meditações" de Descartes foram dedicadas
"ao reitor e aos doutores da sagrada Faculdade de Teologia em Paris",
e sua premissa era "aceitar por meio da fé o fato de que a alma humana não
morre com o corpo e de que Deus existe".
Yacob, pelo contrário, propõe um método muito mais
agnóstico, secular e inquisitivo —o que também reflete uma abertura ao
pensamento ateu. O quarto capítulo da "Hatäta" começa com uma pergunta
radical: "Tudo que está escrito nas Sagradas Escrituras é verdade?"
Ele prossegue pontuando que todas as diferentes religiões alegam que sua fé é a
verdadeira:
"De fato, cada uma delas diz: 'Minha fé é a certa, e
aqueles que creem em outra fé creem na falsidade e são inimigos de Deus'. (...)
Assim como minha fé me parece verdadeira, outro considera verdadeira sua
própria fé; mas a verdade é uma só".
Assim, ele deslancha um discurso iluminista sobre a
subjetividade da religião, mas continua a crer em algum tipo de criador
universal. Sua discussão sobre a existência de Deus é mais aberta que a de
Descartes e talvez mais acessível aos leitores de hoje, como quando incorpora
perspectivas existencialistas:
"Quem foi que me deu um ouvido com o qual ouvir, quem
me criou como ser reacional e como cheguei a este mundo? De onde venho? Tivesse
eu vivido antes do criador do mundo, teria conhecido o início de minha vida e
da consciência de mim mesmo. Quem me criou?".
IDEIAS AVANÇADAS
No capítulo cinco, Yacob aplica a investigação racional a
leis religiosas diferentes. Critica igualmente o cristianismo, o islã, o
judaísmo e as religiões indianas.
Ele aponta, por exemplo, que o criador, em sua sabedoria,
fez o sangue fluir mensalmente do útero das mulheres, para que elas possam
gestar filhos. Assim, conclui que a lei de Moisés, segundo a qual as mulheres
são impuras quando menstruam, contraria a natureza e o criador, já que
"constitui um obstáculo ao casamento e a toda a vida da mulher, prejudica
a lei da ajuda mútua, interdita a criação dos filhos e destrói o amor".
Desse modo, inclui em seu argumento filosófico a perspectiva
da solidariedade, da mulher e do afeto. E ele próprio viveu segundo esses
ideais.
Fabio Zimbres
Ilustração de capa da Ilustríssima, por Fabio Zimbres
Depois de sair da caverna, pediu em casamento uma moça pobre
chamada Hirut, criada de uma família rica. O patrão dela dizia que uma
empregada não estava em pé de igualdade com um homem erudito, mas a visão de
Yacob prevaleceu. Consumada a união, ele declarou que ela não deveria mais ser
serva, mas seu par, porque "marido e mulher estão em pé de igualdade no
casamento".
Contrastando com essas posições, Kant (1724-1804) escreveu
um século mais tarde em "Observações sobre o Sentimento do Belo e do
Sublime" (1764): "Uma mulher pouco se constrange com o fato de não
possuir determinados entendimentos".
E, nos ensaios de ética do alemão, lemos que "o desejo
de um homem por uma mulher não se dirige a ela como ser humano, pelo contrário,
a humanidade da mulher não lhe interessa; o único objeto de seu desejo é o sexo
dela".
Yacob enxergava a mulher sob ótica completamente diferente:
como par intelectual do filósofo.
Ele também foi mais iluminista que seus pares do Iluminismo
no tocante à escravidão. No capítulo cinco, Yacob combate a ideia de que
"possamos sair e comprar um homem como se fosse um animal". Assim,
ele propõe um argumento universal contra a discriminação:
"Todos os homens são iguais na presença de Deus; e
todos são inteligentes, pois são suas criaturas; ele não destinou um povo à
vida, outro à morte, um à misericórdia e outro ao julgamento. Nossa razão nos
ensina que esse tipo de discriminação não pode existir".
As palavras "todos os homens são iguais" foram
escritas décadas antes de Locke (1632-1704), o pai do liberalismo, ter
empunhado sua pena.
E a teoria do contrato social de Locke não se aplicava a
todos na prática: ele foi secretário durante a redação das "Constituições
Fundamentais da Carolina" (1669), que concederam aos homens brancos poder
absoluto sobre seus escravos africanos. O próprio inglês investiu no comércio
negreiro transatlântico.
Comparada à de seus pares filosóficos, portanto, a filosofia
de Yacob frequentemente parece o epítome dos ideais que em geral atribuímos ao
Iluminismo.
ANTON AMO
Alguns meses depois de ler a obra de Yacob, enfim tive
acesso a outro livro raro: uma tradução dos escritos reunidos do filósofo Anton
Amo (c. 1703-55), que nasceu e morreu em Gana.
Amo estudou e lecionou por duas décadas nas maiores
universidades da Alemanha (como Halle e Jena), escrevendo em latim. Hoje,
segundo o World Library Catalogue, só um punhado de exemplares de seu
"Antonius Guilielmus Amo Afer of Axim in Ghana" está disponível em bibliotecas
mundo afora.
O ganês nasceu um século após Yacob. Consta que ele foi
sequestrado do povo akan e da cidade litorânea de Axim quando era pequeno,
possivelmente para ser vendido como escravo, sendo levado a Amsterdã, para a
corte do duque Anton Ulrich de Braunschweig-Wolfenbüttel —visitada com
frequência pelo polímata G. W. Leibniz (1646-1716).
Batizado em 1707, Amo recebeu educação de alto nível,
aprendendo hebraico, grego, latim, francês e alemão —e provavelmente sabia algo
de sua língua materna, o nzema.
Tornou-se figura respeitada nos círculos acadêmicos. No
livro de Carl Günther Ludovici sobre o iluminista Christian Wolff (1679-1754)
—seguidor de Leibniz e fundador de várias disciplinas acadêmicas na Alemanha—,
Amo é descrito como um dos wolffianos mais proeminentes.
No prefácio a "Sobre a Impassividade da Mente
Humana" (1734), de Amo, o reitor da Universidade de Wittenberg, Johannes
Gottfried Kraus, saúda o vasto conhecimento do autor, situa sua contribuição ao
iluminismo alemão em um contexto histórico e sublinha o legado africano da
Renascença europeia:
"Quando os mouros vindos da África atravessaram a
Espanha, trouxeram com eles o conhecimento dos pensadores da Antiguidade e
deram muita assistência ao desenvolvimento das letras que pouco a pouco
emergiam das trevas".
O fato de essas palavras terem saído do coração da Alemanha
na primavera de 1733 ajuda a lembrar que Amo não foi o único africano a
alcançar o sucesso na Europa do século 18.
Na mesma época, Abram Petrovich Gannibal (1696-1781), também
sequestrado e levado da África subsaariana, tornava-se general do czar Pedro, o
Grande, da Rússia. O bisneto de Gannibal se tornaria o poeta nacional da
Rússia, Alexander Pushkin. E o escritor francês Alexandre Dumas (1802-70) foi
neto de uma africana escravizada e filho de um general aristocrata negro
nascido no Haiti.
Amo tampouco foi o único a levar diversidade e
cosmopolitismo a Halle nas décadas de 1720 e 1730. Vários alunos judeus de
grande talento estudaram na universidade. O professor árabe Salomon Negri, de
Damasco, e o indiano Soltan Gün Achmet, de Ahmedabad, também passaram por lá.
CONTRA A ESCRAVIDÃO
Em sua tese, Amo escreveu explicitamente que havia outras
teologias além da cristã, incluindo entre elas a dos turcos e a dos
"pagãos".
Ele discutiu essas questões na dissertação "Os Direitos
dos Mouros na Europa", em 1729. O trabalho não pode ser encontrado hoje,
mas, no jornal semanal de Halle de novembro de 1729, há um artigo curto sobre o
debate público de Amo. Segundo esse texto, o ganês apresentou argumentos contra
a escravidão, aludindo ao direito romano, à tradição e à razão.
Será que Amo promoveu a primeira disputa legal da Europa
contra a escravidão? Podemos pelo menos enxergar um argumento iluminista em
favor do sufrágio universal, como o que Yacob propusera cem anos antes. Mas
essas visões não discriminatórias parecem ter passado despercebidas dos
pensadores principais do iluminismo no século 18.
David Hume (1711-76), por exemplo, escreveu: "Tendo a
suspeitar que os negros, e todas as outras espécies de homem em geral (pois
existem quatro ou cinco tipos diferentes), sejam naturalmente inferiores aos
brancos". E acrescentou: "Nunca houve nação civilizada de qualquer
outra compleição senão a branca, nem indivíduo eminente em ação ou especulação".
Kant levou adiante o argumento de Hume e enfatizou que a
diferença fundamental entre negros e brancos "parece ser tão grande em
capacidade mental quanto na cor", antes de concluir, no texto do curso de
geografia física: "A humanidade alcançou sua maior perfeição na raça dos
brancos".
Na França, o mais célebre pensador iluminista, Voltaire
(1694-1778), não só descreveu os judeus em termos antissemitas, como quando
escreveu que "todos eles nascem com fanatismo desvairado em seus
corações"; em seu ensaio sobre a história universal (1756), ele afirmou
que, se a inteligência dos africanos "não é de outra espécie que a nossa,
é muito inferior".
Como Locke, Voltaire investiu dinheiro no comércio de
escravos.
CORPO E MENTE
A filosofia de Amo é mais teórica que a de Yacob, mas as
duas compartilham uma visão iluminista da razão, tratando todos os humanos como
iguais.
Seu trabalho é profundamente engajado com as questões da
época, como se vê em seu livro mais conhecido, "Sobre a Impassividade da
Mente Humana", construído com um método de dedução lógica utilizando
argumentos rígidos, aparentemente seguindo a linha de sua dissertação jurídica
anterior. Aqui ele trata do dualismo cartesiano, a ideia de que existe uma
diferença absoluta de substância entre a mente e o corpo.
Em alguns momentos Amo parece se opor a Descartes, como
observa o filósofo contemporâneo Kwasi Wiredu. Ele argumenta que Amo se opôs ao
dualismo cartesiano entre mente e corpo, favorecendo, em vez disso, a metafísica
dos akan e o idioma nzema de sua primeira infância, segundo os quais sentimos a
dor com nossa carne ("honem"), e não com a mente
("adwene").
Ao mesmo tempo, Amo diz que vai tanto defender quanto atacar
a visão de Descartes de que a alma (a mente) é capaz de agir e sofrer junto com
o corpo. Ele escreve: "Em resposta a essas palavras, pedimos cautela e
discordamos: admitimos que a mente atua junto com o corpo graças à mediação de
uma união natural. Mas negamos que ela sofra junto com o corpo".
Amo argumenta que as afirmações de Descartes sobre essas
questões contrariam a visão do próprio filósofo francês. Ele conclui sua tese
dizendo que devemos evitar confundir as coisas que fazem parte do corpo e da
mente. Pois aquilo que opera na mente deve ser atribuído apenas à mente.
Talvez a verdade seja o que o filósofo Justin E. H. Smith,
da Universidade de Paris, aponta em "Nature, Human Nature and Human
Difference" (natureza, natureza humana e diferença humana, 2015):
"Longe de rejeitar o dualismo cartesiano, pelo contrário, Amo propõe uma
versão radicalizada dele".
Mas será possível que tanto Wiredu quanto Smith tenham
razão? Por exemplo, será que a filosofia akan tradicional e a língua nzema
continham uma distinção cartesiana entre corpo e mente mais precisa que a de
Descartes, um modo de pensar que Amo então levou para a filosofia europeia?
Talvez seja cedo demais para sabermos, já que uma edição
crítica das obras de Amo ainda aguarda ser publicada, possivelmente pela Oxford
University Press.
COISA EM SI
No trabalho mais profundo de Amo, "Treatise on the Art
of Philosophising Soberly and Accurately" (tratado sobre a arte de
filosofar com sobriedade e precisão, 1738), ele parece antecipar Kant. O livro
trata das intenções de nossa mente e das ações humanas como sendo naturais,
racionais ou de acordo com uma norma.
No primeiro capítulo, escrevendo em latim, Amo argumenta que
"tudo é passível de ser conhecido como objeto em si mesmo, ou como uma
sensação, ou como uma operação da mente".
Ele desenvolve em seguida, dizendo que "a cognição
ocorre com a coisa em si" e afirmando: "O aprendizado real é a
cognição das coisas em si. E assim tem sua base na certeza da coisa
conhecida".
Seu texto original diz "omne cognoscibile aut res
ipsa", usando a noção latina "res ipsa" como "coisa em
si".
Hoje Kant é conhecido por seu conceito da "coisa em
si" ("das Ding an sich") em "Crítica da Razão Pura"
(1787) —e seu argumento de que não podemos conhecer a coisa além de nossa
representação mental dela.
Mas é fato sabido que essa não foi a primeira utilização do
termo na filosofia iluminista. Como diz o dicionário Merriam-Webster no verbete
"coisa em si": "Primeira utilização conhecida: 1739". Mesmo
assim, isso foi dois anos depois de Amo ter entregue seu trabalho principal em
Wittenberg, em 1737.
À luz dos exemplos desses dois filósofos iluministas, Zera
Yacob e Anton Amo, talvez seja preciso repensarmos a Idade da Razão nas
disciplinas da filosofia e da história das ideias.
Na disciplina da história, novos estudos comprovaram que a
revolução mais bem-sucedida a ter nascido das ideias de liberdade, igualdade e
fraternidade se deu no Haiti, não na França. A Revolução Haitiana (1791-1804) e
as ideias de Toussaint L'Ouverture (1743""1803) abriram o caminho para
a independência do país, sua nova Constituição e a abolição da escravidão.
Em "Les Vengeurs du Nouveau Monde" (os vingadores
do novo mundo, 2004), Laurent Dubois conclui que os acontecimentos no Haiti
foram "a expressão mais concreta da ideia de que os direitos proclamados
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, eram de fato
universais".
Nessa linha, podemos indagar se Yacob e Amo algum dia serão
elevados à posição que merecem entre os filósofos da Era das Luzes.
Fonte: UOL
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