Foi publicado no dia 31 de outubro de 2017, no Diário da Justiça Eletrônico[1], acórdão da 2ª Turma da Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Roraima que julgou improcedente agravo de instrumento pelo qual o município de Boa Vista contestava decisão monocrática nos autos de Medida Protetiva, que lhe obrigava ao fornecimento de alimentação e prestação de serviços assistenciais em favor de crianças migrantes venezuelanas (e de seus pais) em situação de rua ou extrema vulnerabilidade na capital roraimense.
No acórdão, o relator do processo, desembargador Mozarildo Cavalcanti, acentua a aplicabilidade ao caso da Opinião Consultiva 21 de Corte Interamericana de Direitos Humanos [2], para dela concluir pelo dever de assistência social do ente municipal. Afirma o desembargador em seu voto: "Quanto à responsabilidade pela medida de proteção às crianças imigrantes em situação de vulnerabilidade, independentemente da regularidade de sua situação, considero que um instrumento-chave do qual deriva a obrigação jurídica dos entes federativos brasileiros é a Opinião Consultiva 21 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH)."
É recordado no voto que, ao lado da função contenciosa, a Corte IDH também possui função consultiva, sendo, pois, competente para atender a consultas formuladas pelos Estados membros e pelos órgãos da Organização dos Estados Americanos, consoante previsto no artigo 64 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no artigo 2º do Estatuto da Corte IDH, e regulamentado nos artigos 60 a 65 do Regulamento da Corte.
De acordo com Manuel E. Ventura Robles e Daniel Zovatto Garetto, a "jurisdição consultiva" estabelecida pelo artigo 64 da Convenção "é única no direito internacional contemporâneo", dado que a função consultiva do sistema interamericano é de tal modo ampla que criou um "método judicial alterno", de caráter consultivo [3]. A finalidade do método de consultas seria, segundo os autores, o de ajudar os Estados e órgãos da OEA a observar e aplicar os tratados de direitos humanos do sistema, mas sem submeter as partes solicitantes ao formalismo e ao sistema de sanções típicos do exercício da função contenciosa.
De 1992 até hoje, foram publicadas 22 Opiniões Consultivas pela Corte IDH — e há ainda algumas solicitações pendentes de apreciação —, cada uma delas respondendo a indagações as mais variadas e solicitadas por distintos países.
A Opinião 21 é especialmente importante para a realidade social vivenciada por Roraima, uma vez que, com a intensa migração de famílias venezuelanas fugindo da crise econômica e política em seu país, tornam-se cada vez mais comuns situações de pessoas que, não obtendo qualquer assistência básica, estão hoje em situação de extrema vulnerabilidade social em Boa Vista. Há, inclusive, muitas crianças venezuelanas em situação de rua pela capital roraimense.
A referida Opinião, solicitada pelo Brasil, pela Argentina, pelo Paraguai e pelo Uruguai (os países fundadores do Mercosul) responde, especificamente, a questionamentos sobre os direitos e garantias de crianças no contexto da migração. O desembargador Mozarildo, ao reconhecer que a obrigação jurídica do Estado de prestar assistência material aos migrantes — pelo menos para as crianças migrantes — decorre de maneira especialmente expressa da Opinião 21, destaca desta o seu parágrafo 104: "[... que] o Estado receptor da criança avalie, através de procedimentos adequados que permitam determinar de forma individualizada o interesse superior da criança [... e] que ofereçam um nível de vida em conformidade com seu desenvolvimento físico, mental, espiritual e moral, através da assistência material e programas de apoio, particularmente com respeito à nutrição, o vestuário e a habitação [...]”.
Há no direito internacional dos direitos humanos um debate inconcluso sobre se as Opiniões Consultivas da Corte IDH são vinculantes ou apenas recomendatórias. Também isso é enfrentado no voto do acórdão: "Embora haja um debate em curso sobre o grau de vinculatividade das Opiniões Consultivas da Corte Interamericana (ou mesmo de outros tribunais internacionais), alinho-me à corrente defendida por Héctor Faúndez Ledesma, que entende que as chamadas Opiniões Consultivas não apenas estão dotadas da autoridade do órgão judicial das quais emana, mas possuem efeito jurídico vinculante. Esse efeito, segundo penso, deve ser reconhecido pelo menos para o(s) Estado(s) que solicitou(aram) a consulta, de modo que, ainda que se discuta a vinculatividade de todas as Opiniões Consultivas para o Brasil, pode-se dizer, de pronto, que a OC-21 se revela a ele obrigatória".
Na primeira Opinião Consultiva emanada pela Corte, ainda em 1984, esta consignou que "não se deve esquecer, com efeito, que as opiniões consultivas da Corte, como as de outros tribunais internacionais, por sua própria natureza, não têm o mesmo efeito vinculante que se reconhece para suas sentenças em matéria contenciosa" [4]. Na Opinião Consultiva 15, de 1997, a Corte IDH parece ter avançado alguns passos no reconhecimento da vinculatividade de seus pareceres consultivos: "[...] ainda quando a opinião consultiva da Corte não tem o caráter vinculante de uma sentença em um caso contencioso, tem, de outro lado, efeitos jurídicos inegáveis" [5].
Na doutrina internacional, juristas renomados como Thomas Buergenthal, Claudio Grossman e Pedro Nikken, contando inclusive com experiência profissional no exercício da jurisdição internacional, registram que, na prática, as opiniões consultivas gozam hoje de grande autoridade e cumprem uma importante função, em especial ante os tropeços do exercício da função contenciosa pelos tribunais internacionais [6]. Mas poucos autores são tão diretos quanto o chileno Héctor Faúndez Ledesma, citado no acórdão roraimense, que, em seu artigo El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: Aspectos institucionales y procesales registra: "Seria absurdo que cada um dos Estados partes pudesse interpretar a Convenção ao seu arbítrio [...] é por isso que, em caso de dúvidas quanto ao sentido e alcance de suas disposições, tem sido assinalado qual é o órgão encarregado de emitir um pronunciamento sobre a interpretação correta das mesmas, porém, por certo, essa interpretação é vinculante para os Estados e não pode constituir uma mera 'opinião'. Por conseguinte, não podemos compartilhar da tese que diminui o valor dos ditames da Corte [...]" (tradução livre) [7].
Alinhando-se a essa corrente, a 2ª Turma da Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Roraima vem fixar um precedente inaudito no Brasil. Mesmo a doutrina nacional é reticente ao tratar do caráter vinculante das Opiniões Consultivas da Corte IDH. A professora da PUC-RJ Nádia de Araújo, também citada no acórdão, embora realce a influência das Opiniões da Corte (em especial as Opiniões 5 e 16) no ordenamento jurídico brasileiro, afirma que elas possibilitam maior certeza ao direito internacional, "embora não sejam vinculantes" para os Estados [8].
Ainda que as opiniões consultivas não sejam estranhas à jurisprudência dos tribunais brasileiros, talvez a própria natureza jurídica das mesmas ainda seja desconhecida a muitos, uma vez que, por exemplo, no RE 511.961/SP, o Supremo Tribunal Federal trata a Opinião Consultiva 5 da Corte (sobre associatividade obrigatória aos jornalistas) como se fosse um "caso" contencioso, segundo afirmado pelo desembargador Mozarildo no acórdão roraimense. O raciocínio então seria: se uma opinião consultiva que sequer foi solicitada pelo Brasil (a Opinião 5 foi solicitada pela Costa Rica) restou incorporada com força normativa na jurisprudência pátria, com mais razão deveria ter força normativa no plano doméstico uma opinião solicitada pelo Brasil.
Outras fontes normativas são citadas no acórdão, como a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, para reconhecer a responsabilidade dos entes estatais para com políticas públicas voltadas à proteção da infância, mas é eloquente o destaque dado à Opinião Consultiva 21, bem como a sua vinculatividade. Desse precedente (fixado, frise-se, em autos de Agravo de Instrumento) pode surgir nas tribunais e na doutrina brasileiros uma discussão rica sobre a matéria, e não restrita aos fóruns jusinternacionalistas.
[1] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE RORAIMA. Diário da Justiça Eletrônico. Ano XX - Edição 6085, pp. 07-13. Disponível em: <http://diario.tjrr.jus.br/dpj/dpj-20171031.pdf>.
[2] Corte IDH. Direitos e garantias de crianças no contexto da migração e/ou em necessidade de proteção internacional. Opinião Consultiva OC-21/14 de 19 de agosto de 2014. Serie A n. 21.
[3] ROBLES, Manuel E. Ventura; GARETTO, Daniel Zovatto. La naturaleza de la función consultiva de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. San José. IIDH. Vol. 7. 1988.
[4] Corte IDH. "Outros tratados" objeto da função consultiva da Corte (Art. 64 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-1/82 de 24 de setembro de 1982. Serie A n. 1, parágrafo 32.
[5] Corte IDH. Informes da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Art. 51 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Opinião Consultiva OC-15/97 de 14 de novembro de 1997. Serie A n. 15, parágrafo 26.
[6] BUERGENTHAL, Thomas; GROSSMAN, Claudio; y NIKKEN, Pedro: Manual Internacional de Derechos Humanos. Caracas: Edit. Jurídica de Venezuela, 1990, p. 112.
[7] FAÚNDEZ LEDESMA, Héctor. El sistema interamericano de protección de los derechos humanos: aspectos institucionales y procesales. San José, C.R.: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 2004, p. 990.
[8] ARAÚJO, Nádia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito de Campos, ano VI, N° 6 - Junho de 2005, p. 231.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário