No dia 3 de janeiro, a Câmara de Primeira Instância VI do Tribunal Penal Internacional (TPI), responsável pelo caso Procurador v. Bosco Ntaganda, decidiu que tem jurisdição para julgar as acusações de crime de guerra de estupro e crime de guerra de escravidão sexual contra crianças soldados membros da Força Patriótica pela Libertação do Congo (FPLC), que era liderada pelo réu, o senhor Bosco Ntaganda.
Os advogados de defesa alegaram que o TPI não possui jurisdição para julgar essas duas acusações específicas, pois, de acordo com o Artigo 3º Comum às Convenções de Genebra de 1949, membros de uma força armada não podem cometer crimes de guerra contra os outros membros dessa mesma força armada. Nesse sentido, o Artigo 3º Comum apenas estabelece obrigações aos membros de uma força armada em face dos membros de outra. Assim, é juridicamente impossível que Ntaganda seja condenado por atos cometidos por ele e pelos membros da FPLC contra crianças soldados que também eram membros da FPLC.
Em linhas gerais, a questão central a ser analisada pela Câmara pode ser formulada nos seguintes termos: os combatentes de uma parte beligerante podem cometer crimes de guerra contra os outros membros da mesma força armada a qual também são membros?
Inicialmente, a Câmara de Primeira Instância VI havia decidido que essa questão não é de natureza jurisdicional e, portanto, seria analisada na sentença. Contudo, a Câmara de Apelações decidiu que a questão possui caráter jurisdicional, devolvendo os autos à Câmara de Primeira Instância VI para essa decidisse de forma interlocutória.
Em sua decisão, a Câmara concluiu que a interpretação restritiva do Artigo 3º Comum, apresentada pela defesa, é contrária à própria lógica e essência do Direito Internacional Humanitário, que objetiva reduzir o sofrimento resultante dos conflitos armados. Também se concluiu que os próprios membros das forças armadas das partes beligerantes não são excluídos enquanto tais da posição de potenciais vítimas dos crimes de guerra de estupro e de escravidão sexual. A Câmara relembrou que “[e]mbora o Direito Internacional Humanitário permita que os combatentes participem diretamente nas hostilidades e, como parte desta participação, ataquem os combatentes das forças armadas inimigas e os civis que participam diretamente nas hostilidades, e preveja ainda certas justificações para as condutas que resultem em danos ou a morte de pessoas que não poderiam ser legitimamente atacadas, inexiste uma justificativa para realizar atos de violência sexual contra qualquer pessoa, independentemente desse indivíduo poder ou não ser atacado ou morto, segundo as normas do Direito Internacional Humanitário”.
Diante disso, a Câmara concluiu que a proteção contra a violência sexual garantida pelo Direito Internacional Humanitário não se limita apenas a certas categorias de pessoas. Na verdade, essa proteção se aplica a todas as pessoas, em todos os momentos. Para corroborar essa conclusão, a Câmara destacou que a escravidão sexual é uma forma específica de escravidão. Sabendo que a proibição de escravidão tem um status jus cogens, a proibição de escravidão sexual necessariamente possui o mesmo status e, como tal, nenhuma derrogação a essa proibição é permitida. Além disso, também se indicou que o estupro pode constituir um ato de tortura ou de genocídio, cujas proibições também são normas jus cogens inegáveis. A maioria da Câmara afirmou ainda que a proibição de estupro, por si só, possui status jus cogens.
Em decorrência do caráter peremptório (jus cogens) das proibições de estupro e de escravidão sexual, essas proibições se aplicam em todos os momentos, tanto em tempos de paz, quanto em conflitos armados, e a todas as pessoas, independentemente de qualquer condição jurídica. No entanto, isso não significa que todo ato de estupro ou escravidão sexual cometido durante um conflito armado constitui um crime de guerra. Deve-se provar que a conduta em questão ocorreu no contexto e estava associada a um conflito armado internacional ou não internacional.
Diante do exposto, a Câmara concluiu que os próprios membros das forças armadas não estão excluídos da condição de vítimas em potencial dos crimes de estupro e escravidão sexual, seja com fundamento no Estatuto de Roma, nas normas do Direito Internacional Humanitário ou no Direito Internacional geral.
A decisão completa, em inglês, pode ser lida aqui.
Fonte: CEDIN
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