Quando o escritor português José Luís Peixoto esteve pela
primeira vez na Coreia do Norte, em 2012, precisou deixar o celular no
aeroporto. Também estava terminantemente proibido de fotografar ou filmar o que
via. Nos últimos três anos, as regras para os turistas mudaram um pouco — há
duas semanas foi anunciada a expansão do aeroporto internacional de Pyongyang,
o que pode indicar uma abertura maior. Mesmo assim, quem visita o país mais
fechado do mundo é obrigado a seguir certas regras: viajar com agências de
específicas, deixar o passaporte no aeroporto e fazer passeios predeterminados
em grupos e sempre com guias.
A jornalista Fernanda Morena, 31 anos, morou por seis na
China. Quando resolveu voltar para o Brasil, decidiu que sua última viagem
seria para a Coreia do Norte — outra alternativa para cruzar a fronteira é pela
Rússia. Meses antes, já havia tentado um visto de jornalista para cobrir a
Crise dos Mísseis, sem sucesso. Dessa vez, como turista, escolheu a agência
Koryo Tours, mais antiga a fazer o roteiro, fundada por um britânico. O pacote
fechado, por cerca de US$ 600, incluía sete dias de visitas, dois deles
praticamente na estrada até a cidade chinesa que faz fronteira com o país.
Depois, mais seis horas de trem, que parava muitas vezes para checagem, onde
policiais revistavam as malas.
Fernanda Morena com uma guarda da Zona Desmilitarizada (DMZ) - Arquivo pessoal |
— Fui de trem, com chineses, porque falava mandarim. Além de
ser mais barato que a viagem de avião, cruzei o país inteiro e pude ver o
interior, muito pobre, que não teria visto se fosse de outra maneira —
relembra. — Na estação de trem recolheram meu passaporte e eu fiquei apenas com
um carta de visto. É o único documento que fica com você durante a viagem.
Quando você recebe de volta seu passaporte, não tem qualquer carimbo, é como se
eu nunca estivesse estado lá.
Os passeios são todos programados com detalhes e horários
rígidos, e exigem a companhia constante — e atenta — de um guia da agência e
outro norte-coreano. Mesmo no dia considerado livre para visitas, os turistas
são vigiados de longe. Fernanda relembra que, no primeiro dia de viagem, um
casal de turistas chineses de cerca de 18 anos decidiu não fazer os passeios,
pois não se sentia bem. Por volta do meio-dia, atravessaram a ponte que ligava
o hotel ao centro da cidade, a pé, e foram a um café.
— Uma pessoa que estava lá ligou para o Ministério do
Turismo e acabaram recolhendo o casal. Os guias temiam ser prejudicados e os
dois tiveram que assinar um termo de compromisso pedindo desculpas — conta a
jornalista, que apelidou o local de “Alcatraz”, em referência à lendária prisão
americana. — Uma vez, uma senhora saiu de casa quando me viu tirando fotos e
reclamou com o guia, que foi me buscar. As pessoas são treinadas para não falar
com os turistas. Só interagi com os norte-coreanos em dois momentos: num parque
de diversões, que não estava no roteiro e conseguimos ir depois de muito
insistir com um dos nossos guias; e às margens de um rio, onde um senhor pediu
para tirar uma foto com ele. Rapidamente o guia me chamou.
Para quem sai do Brasil, o visto não é difícil — a não ser
que o visitante seja jornalista — e custa em média US$ 55. O passaporte também
fica retido com os guias até o retorno do grupo. O pacote custa em média de US$
3.500, incluindo deslocamentos, hospedagem e alimentação. No Brasil, a agência
Happy Way oferece a viagem desde 2012.
— Geralmente tentamos mandar um guia que fale português e
espanhol para facilitar a comunicação — explica Danielle Schumaker, gerente
comercial da empresa. — O público brasileiro ainda é limitado: a procura até
ano passado não chegou a sete pessoas. Mas agora, com a embaixada do Brasil na
Coreia do Norte, o turismo no país está um pouco mais facilitado, embora
continue rígido.
O destino costuma ser procurado por turistas que preferem
destinos mais exóticos, segundo Danielle. Muitos deles, ficam curiosos com o
isolamento do povo da Coreia do Norte, e sentem a necessidade de ver de perto,
para descobrir se aquilo realmente é real.
— Queríamos ver com nossos próprios olhos o país mais fechado
do mundo. E realmente uma viagem para lá só é realizada dentro dos moldes da
agência de turismo norte-coreana, acompanhado por dois guias e dentro de um
roteiro pré-determinado. Não há liberdade nenhuma. Nós fomos com visto de
turista, e não de jornalista. Justamente porque queríamos ver como um turista
tradicional pode conhecer (e o que ele pode conhecer) da Coreia do Norte —
conta André Fran, apresentador do programa “Não conta lá em casa”, do canal
Multishow.
Ele esteve no país há cinco anos, quando as regras eram
ainda mais severas. Um dos momentos mais surreais, relembra, foi quando lhe
apresentaram a “última novidade da música na Europa: os Beatles”.
— Eles não têm a mínima noção de como o país é visto aos
olhos do mundo, daí a curiosidade e as constantes perguntas sobre que
achávamos, pensávamos e como víamos a Coreia do Norte e suas principais ações
no cenário geopolítico mundial. Mas tudo era feito meio que entre sussurros.
TURISMO ABERTO
Viajar é o grande hobby da gerente de informação e mídia
digital Glaucimara Silva: foram 40 países na última década — “e quanto mais
exótico o destino, melhor”. Exatamente por isso, a Coreia do Norte sempre
esteve na lista:
— Quando um amigo mudou-se para Pyongyang, para morar seis
meses a trabalho, percebi que era a hora de tentar ir mesmo sabendo que talvez
não pudéssemos nos encontrar, caso as restrições turísticas fossem de fato
rígidas. No entanto, com o suporte dele, as coisas se mostraram bem mais fáceis
— conta ela, que esteve no país no ano passado, com um visto diferente do
tradicional, o que abriu muitas portas. — Não fui como turista, mas como
convidada da empresa onde meu amigo trabalha, que assumiu as responsabilidades
por mim.
Graças a isso, a experiência acabou sendo bem diferente da
convencional. Como convidados, Glaucimara e outro brasileiro, Marcel Stenner,
não precisaram se hospedar nos hotéis destinados aos turistas. Também não
tiveram que ser acompanhados por nenhum guia em Pyongyang, onde andaram — a pé
ou de bicicleta — à vontade.
— Fizemos fotos, vídeos, vimos a vida passar e nos
surpreendemos com a normalidade da cidade. Nossa única restrição foi quanto ao
transporte público e à moeda (usamos dólar e euro). Até andamos de metrô, mas o
passeio fez parte de um pacote de um dia que contratamos lá para visitar locais
em que só pode ir com autorização do governo e com alguém de confiança.
Neste dia, a dupla pode conversar bastante com dois guias
norte-coreanos sobre todos os tipos de assunto.
— Fomos até zoados pela Copa do Mundo (a notícia do 7x1
contra a Alemanha chegou lá sem ser deturpada) e perguntados se o Rio de
Janeiro era como apresentado na animação “Rio”. Também conversamos sobre o fato
de o Brasil ter uma presidenta e, à época, outra candidata mulher concorrendo
ao cargo mais importante do país — conta. — Acredito que, por termos respeitado
o país e nos mostrado dispostos a formar a nossa própria opinião, uma opinião
sem ser tendenciosa e preconceituosa, acabamos passando confiança aos
norte-coreanos comuns. Não estávamos lá para julgar ninguém e nem comprovar
nenhuma teoria, mas para conhecermos e aprendermos. É aquela coisa da gentileza
gera gentileza. Não fomos hostis nem fomos hostilizados.
VIAGEM VIROU LIVRO
A experiência no país vivida pelo português José Luís
Peixoto acabou virando um livro “Dentro do segredo” (Companhia das Letras). A
viagem começou a ser concebida quase um ano e meio antes. E calhou de ser
durante um megaevento, o aniversário de 100 anos Kim Il-sung, avô do atual
presidente, Kim Jong-il.
— Decidi ir porque precisava de um desafio novo na escrita,
que fosse completamente diferente de mim. Queria escrever sobre algo que fosse
bem distante — conta. — Foi uma viagem bem fora do habitual, de quase um mês,
que não era restrita à capital. E numa ocasião bem especial.
De lá para cá, Peixoto voltou duas vezes ao país, dessa vez
como guia, parte de um projeto chamado de “Viagens de autor” — onde escritores
são convidados para acompanhar grupos de turistas a lugares que estão referidos
nos seus livros. A próxima viagem, com brasileiros e portugueses, acontece em
outubro.
—Todas as visitas foram diferentes. Sinto que sei mais e
menos, ao mesmo tempo. É uma complexidade enorme. Além de todas as questões
politicas, existem as questões civilizatórias. As pessoas têm valores muito
diferentes do nossos e veem o mundo de forma completamente diferente.
Fonte: O Globo
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