Há testemunhos de desertores que contaram de uma mulher forçada a afogar o próprio bebê, crianças presas e privadas de comida desde o nascimento, famílias inteiras torturadas pelo crime de assistir a uma telenovela estrangeira. E entre comparações com o horror dos campos de concentração nazistas, uma comissão independente do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas acusou na segunda-feira a Coreia do Norte de cometer “atrocidades indescritíveis” contra seus cidadãos. Num longo relatório sobre crimes contra a Humanidade no país comunista, a ONU não só descreveu uma realidade de tortura e privação, onde há “uma quase total negação dos direitos de liberdade, consciência e religião”, como exigiu que os responsáveis — incluindo o ditador Kim Jong-un — respondam ao Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda.
Os investigadores da ONU são juristas de Austrália, Indonésia e Sérvia que trabalham no documento desde maio de 2013. Impedidos de entrar na Coreia do Norte, eles coletaram milhares de depoimentos de refugiados e dissidentes que conseguiram deixar o país. Mas o regime de Pyongyang rebateu todas as acusações, afirmando que o relatório foi feito a partir de material falso fornecido por “forças hostis” apoiadas por Estados Unidos, Japão e União Europeia. Num comunicado de duas páginas, a delegação norte-coreana chamou a comissão de “marionete” política.
“Trata-se do instrumento de um complô político para sabotar o sistema socialista e difamar o país. A República Democrática da Coreia do Norte deixa claro mais uma vez que essas ‘violações de direitos humanos’ mencionadas no tal informe não existem em nosso país”, diz o texto.
Comparação com o nazismo
As denúncias são graves. Do uso da fome deliberada à tortura em campos de prisioneiros que abrigariam de 80 mil a 120 mil pessoas, há relatos de sequestros perpetrados pelo Estado, execuções públicas e doutrinação “para aterrorizar a população e mantê-la submissa”. Segundo o presidente da comissão, o australiano Michael Kirby, ainda que a Coreia do Norte não tenha cooperado com a investigação, uma cópia das conclusões foi enviada a Pyongyang de antemão, com uma carta alertando o líder norte-coreano de que ele poderia ser pessoalmente acusado pelos abusos — e denunciado à Justiça internacional.
A comissão denuncia uma “resposta internacional inadequada” diante dos crimes e pede que a “comunidade internacional aceite a responsabilidade de proteger o povo da Coreia do Norte”.
— Espero que a comunidade internacional seja tocada pelos detalhes. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, muitas pessoas diziam “ah, se nós soubéssemos das coisas erradas feitas nos países das forças hostis...” Bem, a comunidade internacional sabe agora. Não há a desculpa da falta de ação porque não sabíamos. Esta é uma hora de ação — cobrou Kirby.
Em 372 páginas, os investigadores chegaram perto de usar a palavra genocídio — mas não o fizeram. Há relatos de extermínio, assassinato, escravidão, tortura, perseguição e estupros de acordo com raça, gênero e religião. E o estudo calcula que “centenas de milhares” de presos políticos morreram nos campos durante os 50 últimos anos, eliminados gradualmente pela fome deliberada, trabalho forçado, execuções, tortura, violações e a rejeição dos direitos de reprodução por castigos, abortos forçados e infanticídios.
“Estes não são meros excessos do Estado; são componentes essenciais de um sistema político que se moveu dos ideais que, alegam, baseiam sua fundação”, afirma o relatório, respaldado por reproduções das técnicas de tortura empregados pelo regime comunista.
Em outro trecho, a ONU expressa preocupação com a situação alimentar.
“O Estado tem usado comida como um meio de controle da população e deliberadamente bloqueia ajuda por razões ideológicas, causando a morte de centenas de milhares de pessoas”.
A comissão da ONU só vai apresentar as conclusões oficialmente no mês que vem, quando o Conselho de Direitos Humanos vai anunciar suas recomendações. Mas as informações preliminares já causaram reações. Os EUA afirmaram que o relatório mostra “clara e inequivocamente a brutal realidade” dos abusos aos direitos humanos na Coreia do Norte. A porta-voz adjunta do Departamento de Estado, Marie Harf, destacou que Washington apoia o relatório e pediu que Pyongyang adote “medidas concretas” para melhorar a situação. A Coreia do Sul também comemorou o documento, dizendo esperar que os relatos de horror “façam despertar a consciência da comunidade internacional”. Por outro lado, a China, único aliado de Pyongyang, expressou desconforto: “Isso não ajuda a resolver a situação dos direitos humanos”, afirmou a Chancelaria chinesa em nota.
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário