Os meios de comunicação noticiaram, no início do mês de outubro, que a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal entregou a conclusão de seus trabalhos para o aperfeiçoamento da lei de arbitragem, acolhida como PL 406/13 e que se encontra hoje submetida à Comissão de Constituição e Justiça.
A proposta reconhece os méritos da atual lei de arbitragem – algo com o que não se pode deixar de concordar, dado o seu notório desenvolvimento nas últimas duas décadas no Brasil –, sem deixar de apontar a conveniência de se ampliar sua utilização e a necessidade de aperfeiçoamentos pontuais. Esta filosofia que está por trás do projeto e que encontra repercussão em sua justificação mostra por que a Comissão, em vez de propor uma nova lei, preferiu revisar a lei vigente, a ser mantida em sua estrutura principal.
A escolha da Comissão de Juristas parece acertada, como resposta às preocupações manifestadas por ocasião de sua criação, no sentido de haver retrocesso na disciplina da arbitragem em nosso país. De todo modo, os debates ainda estão no início e, para contribuir com a proposta, apresento aqui algumas de minhas primeiras impressões.
(a) Arbitragem e Administração Pública
O projeto estabelece expressamente que a Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se de arbitragem nos contratos por ela celebrados.
Em síntese, a arbitragem poderá ser utilizada nas situações em que a Administração pratica atos de gestão (não já de império), como forma de tutelar interesse público secundário (patrimonial), e não interesse público primário (bem comum), este tipicamente indisponível. O projeto acolhe, em linhas gerais, a orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (v., por exemplo, Recursos Especiais 612.439 e 606.345, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha; AgRg no MS 11.308, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux; Recurso Especial 904.813, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi).
Na verdade, a utilização da arbitragem em contratos envolvendo a Administração Pública já vem ocorrendo há alguns anos com relativa frequência, sobretudo com sociedades de economia mista. Tal fato não passou despercebido pelo legislador, que contemplou a arbitragem em diversas leis específicas: art. 93, XV da lei 9.472/97 (contratos de concessão firmados pela Anatel); art. 43, X da lei 9.478/97 (contratos de concessão firmados pela ANP); art. 11, III da lei 11.079/04 .(lei das Parcerias Público-Privadas – PPPs); art. 4º, §§ 5º a 7º da lei 10.848/04 (comercialização de energia elétrica) e art. 23-A da lei 8.987/95 (normais gerais para a concessão e a permissão de serviços públicos em geral), acrescentado pela lei 11.196/05, entre outros exemplos.
O projeto tem o mérito, portanto, de estabelecer uma norma geral de admissibilidade da via arbitral envolvendo contratos com a Administração Pública, sepultando de vez possível controvérsia que vez por outra é suscitada contra a sua utilização, especialmente no âmbito do Tribunal de Contas da União.
De acordo com a proposta em discussão, competente para celebrar a convenção de arbitragem será mesma a autoridade ou órgão designada para a realização de acordos ou transações. Trata-se de decorrência de tradicional opção do legislador brasileiro em vincular a noção de disponibilidade do direito suscetível de arbitragem à possibilidade de ser objeto de transação e à sua patrimonialidade, como se verifica pelos arts. 841 e 852 do CC. A equiparação entre disponibilidade e transicionabilidade talvez mereça ser melhor debatida e pode ser alvo de críticas, mas a opção do projeto parece ter sido tomada na expectativa de mitigar eventuais resistências no curso de sua tramitação legislativa.
Como decorrência do princípio da legalidade no âmbito administrativo, o projeto ainda estipula que as arbitragens que envolverem a Administração sempre serão de direito (vedada a arbitragem de equidade), respeitando-se, ainda, o princípio da publicidade, o que afastaria a possibilidade de se estabelecer a confidencialidade na arbitragem.
A opção parece acertada, não só como decorrência do princípio da publicidade previsto no art. 37 da CF, mas também como forma de assegurar que o patrimônio público será adequadamente tutelado no processo arbitral. Resta saber se não seria mais conveniente relativizar esse regime em situações específicas, envolvendo segredos industriais, comerciais ou, sobretudo, segredo de estado, que consistem em informações imprescindíveis à segurança da sociedade e do país (v. arts. 22 e 23 da lei 12.527/11). Em tempos de suspeita de espionagem envolvendo a Petrobras por agências estrangeiras, tal circunstância não pode deixar de ser considerada pelo legislador.
(b) Arbitragem e Direito do Trabalho
O projeto contempla, em um único dispositivo, a admissibilidade da convenção de arbitragem para dissídios individuais no Direito do Trabalho desde que: (i) o empregado ocupe ou venha a ocupar cargo ou função de administrador ou diretor estatutário; (ii) este tome a iniciativa de instituir a arbitragem ou concorde, expressamente, com sua instituição.
Percebe-se, nesse ponto, certa timidez. Nessa direção, o projeto não esclarece o âmbito de cabimento da arbitragem após ter sido deflagrado o litígio, mediante compromisso arbitral, o que seria conveniente, na medida em que há quem sustente – especialmente entre os juslaboristas – a indisponibilidade ampla e irrestrita dos direitos dos empregados.
Não parece ser este o melhor entendimento, com a devida vênia. Embora a CLTestabeleça a irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas pelo empregado, seus efeitos ou consequências de ordem patrimonial são suscetíveis de apreciação econômica e plenamente disponíveis. Trata-se, guardadas as devidas proporções, de fenômeno semelhante ao que ocorre com os direitos da personalidade em geral. Ainda que os direitos à vida, à liberdade, ao nome ou à intimidade sejam indisponíveis em si mesmos, eventual indenização por danos morais em decorrência de sua violação constitui direito francamente disponível.
Um exame das diversas normas da CLT também conduz a idêntica conclusão sobre a matéria. Nesse sentido, ainda que não haja na Consolidação trabalhista nenhuma norma específica sobre a arbitragem nos dissídios individuais, é notável o estímulo que a CLT confere à conciliação, especialmente em seus arts. 764, 831 e 846. A transação, aliás, é realidade frequente nas Varas do Trabalho pelo país inteiro, a evidenciar que nem todos os direitos do empregado são indisponíveis.
É preciso admitir, porém, que existem áreas do Direito do Trabalho que não são suscetíveis, mesmo em tese, de solução pela via arbitral. Isso porque tais matérias não são apreciáveis economicamente e não apresentam o caráter patrimonial exigido pelo art. 1º da lei 9.307/96. Questões atinentes à segurança e à medicina do trabalho, por exemplo, não podem ser submetidas à arbitragem, muito embora eventuais danos ocasionados pelo descumprimento de normas protetivas nestas áreas possam ser apreciados em pecúnia e, portanto, submetidos a um árbitro.
Cumpre destacar, de todo modo, que a arbitragem, para funcionar de forma legítima, depende da livre manifestação de vontade. Por ocasião da contratação e no curso da relação de emprego, em regra, o empregado estará em situação vulnerável, de dependência, sendo preocupante admitir-se a arbitragem neste momento.
Após o encerramento do vínculo, entretanto, estando o conflito já delimitado, as pretensões do empregado terão, em regra, natureza pecuniária e ele estará livre do vínculo de dependência que mantinha com seu antigo empregador, ficando mitigado o risco de vícios na sua manifestação de vontade.
Assim, considerando que o projeto não explicitou todas essas questões, parece que seria conveniente aprofundar a disciplina da arbitragem nos dissídios individuais do Direito do Trabalho, de acordo com a seguinte sistemática: (i) em regra, ela deverá ser instaurada com base em compromisso arbitral, celebrado após o término da relação de emprego; (ii) a arbitragem fundada em cláusula compromissória somente será admitida em duas hipóteses: ou o empregado terá tomado a iniciativa de se dirigir à arbitragem, podendo ainda concordar expressamente com a sua instauração; ou o empregado estará excepcionalmente em situação de igualdade em relação a seu empregador, englobando, entre outras situações (propondo-se aqui certo alargamento da versão atual do projeto), os casos em que ele ocupe ou venha a ocupar cargo ou função de administrador ou diretor estatutário.
(c) Arbitragem, contratos de adesão e consumidor
O projeto tenta resolver, neste ponto, aparente antinomia existente entre a lei de Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor. O atual art. 4º, § 2º da lei 9.307/96 admite a arbitragem nos contratos de adesão apenas se (i) o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem; ou (ii) concordar expressamente com sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. O art. 51, VII do Código de Defesa do Consumidor, ainda mais restritivo, comina de nulidade qualquer cláusula que imponha ao consumidor a via arbitral.
Qual dessas normas valerá atualmente? Sem embargo de posições divergentes sobre o tema, como nem todo contrato de adesão é de consumo e vice-versa, parece que as duas normas podem conviver harmonicamente, a partir de uma interpretação sistemática. De todo modo, essa é questão que ainda permanece em aberto.
A proposta, acertadamente, objetiva resolver a discussão, considerando que as esferas de incidência dos contratos de adesão e de consumo são diversas. De acordo com o projeto, nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se redigida em negrito ou em documento apartado, ficando dispensada a exigência de visto ou assinatura específica para ela. Tratando-se de relação de consumo – e desde que estabelecida por contrato de adesão, o regime se torna ainda mais restritivo, situação em que a cláusula compromissória somente terá eficácia se o consumidor tomar iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar com a sua instituição expressamente, o que corresponde, em linhas gerais, ao regime atual.
Embora o projeto não tenha disciplinado expressamente o compromisso arbitral que envolva contrato de adesão ou relação de consumo, parece não haver qualquer obstáculo para tal possibilidade. É que, uma vez firmado o compromisso, que pressupõe prévia discussão do meio adequado para a resolução de um litígio já deflagrado, parece estar superada a situação de desigualdade entre os contratantes que existia no momento da contratação por adesão, em que as cláusulas e condições não foram discutidas previamente pelo aderente.
(d) Arbitragem e conflitos societários
Mais uma vez seguindo a premissa de ampliar a utilização da arbitragem em outras formas de relações jurídicas, o projeto propõe acrescentar um artigo à lei 6.404/76 (lei das sociedades por ações). Aludido dispositivo aprofunda a disciplina da arbitragem para resolver conflitos societários, que hoje está contemplada no art. 109, § 3º da lei 6.404/76 e é considerada uma das práticas de boa governança corporativa recomendada pela CVM - Comissão de Valores Mobiliários.
A grande controvérsia que reside na arbitragem sobre conflitos societários reside na eficácia subjetiva da cláusula compromissória, não regulada atualmente. Estariam vinculados à via arbitral apenas os acionistas que aprovaram expressamente a sua inserção no estatuto ou também deveriam se submeter à arbitragem os acionistas que não participaram dessa votação ou que ingressaram na sociedade posteriormente? E os acionistas dissidentes, estariam vinculados ou poderiam se dirigir ao Poder Judiciário em caso de conflito societário?
A questão passa pelo embate de dois argumentos principais, que levaram à doutrina a se dividir. De um lado, está a autonomia da vontade, pressuposto essencial para que alguém seja submetido à solução pela via arbitral. De outro, está o princípio da maioria, típico do Direito Societário, segundo o qual a disciplina de todos os interesses que dizem respeito à sociedade e a seus acionistas deve seguir o que deliberar a maior parte dos votantes, que reflete a vontade da coletividade. Ressalvadas as exceções legais – ou seja, os casos em que o legislador estipulou quórum qualificado ou exigiu unanimidade –, vigorará para a sociedade e todos os acionistas, inclusive dissidentes, o que determinar a maioria.
Como a legislação vigente não cuidou de enfrentar a extensão subjetiva da cláusula compromissória envolvendo conflito societário, sempre houve insegurança quanto ao ponto, de tal maneira que a maior parte das arbitragens em matéria societária tem sido instaurada com base não nos atos constitutivos da sociedade, mas em instrumentos paralelos (em especial, com base em acordos de acionistas), nos quais é inequívoca a aceitação expressa das partes envolvidas em submeter eventuais controvérsias à arbitragem.
Em boa hora, portanto, o projeto propõe o aprofundamento da disciplina legislativa sobre o tema, acrescentando um dispositivo que exige quórum qualificado para a inserção de cláusula compromissória no estatuto, correspondente a “acionistas que representem metade, no mínimo, das ações com direito a voto, se maior quorum não for exigido pelo estatuto da companhia“ (art. 136, lei 6.404/76). A cláusula compromissória, uma vez obedecidas as formalidades legais, vinculará indistintamente a todos os acionistas.
O projeto, todavia, não propõe uma solução que se poderia imaginar draconiana. Ao mesmo tempo em que adota concepção ampliativa da eficácia subjetiva da cláusula, também assegura ao acionista dissidente o direito de retirada mediante o reembolso do valor de suas ações. Além disso, ainda como proteção aos acionistas minoritários, o projeto estipula que a inserção da cláusula compromissória somente produzirá efeitos após o decurso do prazo de trinta dias, contados da publicação da ata da Assembleia Geral que a aprovou.
Tal período assegura a atuação do Poder Judiciário para resolver eventuais conflitos entre a data da deliberação e o término do prazo do direito de retirada.
Destaque-se, por fim, que embora se projete a inserção de tal dispositivo na lei das sociedades por ações, tal disciplina também aproveitaria às sociedades limitadas que elejam a lei 6.404/76 como norma supletiva, nos termos do art. 1.053, parágrafo único, do Código Civil, o que reforça a importância da proposta em discussão.
Por Andre Vasconcelos Roque é doutorando e mestre em Direito Processual pela UERJ. Professor de cursos de pós-graduação.
Fonte: Migalhas
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