sábado, 13 de outubro de 2018

Primeiras apátridas reconhecidas pelo Brasil recebem nacionalidade brasileira


As primeiras refugiadas reconhecidas pelo Brasil como apátridas – pessoas sem nacionalidade – receberam a naturalização brasileira nesta quinta-feira (4/10). Os documentos foram entregues pelo Ministério da Justiça durante um evento da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) em Genebra, na Suíça.
Nascidas no Líbano, as irmãs Maha, de 30 anos, e Souad Mamo, de 32, nunca tiveram a nacionalidade reconhecida por nenhum país. A cerimônia foi organizada na Suíça pois Maha estava no local para palestrar sobre a condição de apatridia – as irmãs são de família síria, mas, por questões legais e religiosas, não tiveram direito à cidadania local.
Por causa da condição, as ex-refugiadas não tinham documentos de identificação no país de origem e, por isso, não podiam ter acesso a serviços básicos – como escola e saúde – em nenhum lugar do mundo. Sem pátria, a família Mamo pediu refúgio ao Brasil em 2014.
A entrega da cidadania brasileira às duas mulheres, até então apátridas, foi considerada pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, "um momento histórico".

"Ao conceder a nacionalidade brasileira às irmãs Maha e Souad Maho, o Brasil reafirma sua tradição de acolhimento aos vulneráveis e desassistidos e dá um exemplo ao mundo de que foi, e sempre será, um país comprometido com a erradicação da apatridia."

Hoje, as irmãs moram em Belo Horizonte (MG). Na cerimônia, a mais jovem delas compartilhou sua trajetória pessoal como apátrida e explicou o procedimento de naturalização facilitada pelo qual passou no Brasil.
"Não ter documentos não significa apenas que você está sem papel na carteira. Você não consegue viajar, nem comprar um chip de telefone, nem sair com amigos para uma boate", explicou Maha em entrevista anterior ao G1.

Sem documentos
No Líbano, a falta de documentos impediu a família Mamo de ter acesso a serviços básicos, como educação e saúde. À Síria, elas também não podiam pertencer. Como o pai é cristão e a mãe, muçulmana, o casamento inter-religioso não foi reconhecido no país árabe e, consequentemente, nem os filhos decorrentes da união.
Para conseguir frequentar a escola, as irmãs precisaram "dar um jeitinho", como explica a administradora de empresas. Ela contou com o apoio de uma universidade que abriu as portas e a aprovou no curso de "business and computing" – um diploma duplo oferecido por escolas de computação e administração.
Além disso, quando ficavam doentes, para conseguir uma consulta médica em um hospital, as irmãs contavam com favores de amigos. Eles emprestavam a identidade para que elas pudessem ser atendidas.

Pedido de refúgio
Em 2014, Maha, Souad e o irmão delas, Edward, chegaram ao Brasil. Como nunca tiveram documentos, os irmãos precisaram pedir refúgio na embaixada brasileira em Beirute, no Líbano, para conseguir autorização para viajar.

Passaporte de Maha; documento é emitido pelo Brasil em casos de emergências —
Foto: Maha Mamo/Arquivo Pessoal

O primeiro contato, lembra Maha, foi por meio de uma carta, uma espécie de "pedido de socorro" de quem não tinha nacionalidade – e, por isso, ao longo de toda a vida não teve direito a estudar no próprio país, trabalhar ou receber assistência médica.

O mesmo pedido foi enviado a embaixadas, presidentes e ministros de mais de 190 países ao longo de 10 anos. Como resposta, a princípio, a embaixada brasileira negou o pedido de refúgio de Maha. Depois de outra tentativa, a família conseguiu que o país emitisse um "passaporte emergencial" e as acolhesse como refugiadas.
A autorização aconteceu no mesmo período em que o Brasil abriu as portas para acolher refugiados sírios que fugiam da guerra no país. "É triste falar isso, mas, por sorte, a guerra que aconteceu na Síria abriu essa esperança para gente no Brasil."
O irmão delas, Edward, não participou da cerimônia de naturalização nesta sexta (4) na Suíça. Ele foi morto em 2014 durante um assalto em Belo Horizonte (MG).

Apatridia
De acordo com o Acnur, estima-se que existam cerca de 10 milhões de pessoas no mundo que não possuem nacionalidade – ou não têm sua nacionalidade reconhecida por qualquer país.
Por não terem certidão de nascimento e, consequentemente, outros documentos de identidade, os apátridas enfrentam inúmeras dificuldades com atividades simples do dia a dia, como frequentar uma escola, consultar um médico, trabalhar ou abrir uma conta bancária, por exemplo.
A apatridia ocorre por várias razões, como discriminação contra minorias na legislação nacional, falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente (secessão de Estados) e conflitos de leis entre países.
Para o Acnur, identificar e visibilizar as pessoas apátridas é fundamental para enfrentar as dificuldades que enfrentam e permitir que os governos possam prevenir e reduzir a apatridia.
Nas Américas, Maha Mamo tem sensibilizado diversos funcionários governamentais, parlamentares e equipes do ACNUR e organizações da sociedade civil sobre o problema da apatridia e a importância de facilitar a naturalização de pessoas apátridas, participando de diversos cursos regionais sobre o tema.
Também teve um papel de destaque do encontro regional preparatório das Américas para a Reunião de Alto Nível sobre Apatridia que acontecerá em Genebra, em 2019.

Fonte: G1

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