Quase 400 mil civis continuam presos na província de Ghouta Oritental, região controlada por rebeldes e próxima da capital síria, Damasco. Na semana passada, foi anunciada uma "pausa humanitária" diária para permitir a fuga dos habitantes, mas os bombardeios continuaram.
Só nesta segunda feira (5/02/2018) um comboio com ajuda humanitária conseguiu chegar a Ghouta.
Segundo estimativas do Centro Sírio de Pesquisas Políticas (SCPR, na sigla em inglês), 470 mil pessoas já morreram desde o início da guerra civil síria, em 2011. Só nas últimas semanas, em Ghouta, foram 719 mortos.
Outras 5 milhões já deixaram o país, calcula o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).
1. O que está acontecendo em Ghouta Oriental?
No último mês, o governo sírio e seus aliados intensificaram as ofensivas contra territórios controlados por grupos islâmicos e jihadistas, incluindo Ghouta Oriental, que é controlada pela oposição desde 2012.
O bastião rebelde perto de Damasco sofreu vários dias consecutivos de bombardeios, que deixaram mais de 700 civis mortos.
Segundo a ONU, impressionantes 76% das residências de Ghouta Oriental foram devastadas, e grande parte dos 400 mil moradores do enclave se mudou para abrigos subterrâneos.
Em um vídeo obtido pela BBC na semana passada, duas crianças mostravam os destroços de sua casa. Uma médica da região afirmou que "Ghouta está sendo destruída".
"Nos ataques, as tropas do governo usam vários tipos de armamento. Estamos destruídos, mentalmente e emocionalmente", diz ela.
No fim de fevereiro, por exemplo, uma criança morreu e outras 13 pessoas apresentaram sintomas - como dificuldades em respirar e tonturas - consistentes com os de um ataque de gás cloro. O governo nega ter usado o armamento.
Não se trata da primeira acusação do tipo. Em agosto de 2013, o governo sírio foi acusado por potências ocidentais de disparar foguetes de gás sarin (composto químico que age no sistema nervoso) em Ghouta, Damasco, matando centenas de pessoas.
O presidente sírio, Bashar al-Assad, negou a acusação e culpou os rebeldes, mas concordou em destruir o arsenal químico da Síria. Apesar disso, a Organização pela Proibição de Armas Químicas continuou a reportar o uso de produtos químicos tóxicos em ataques no país.
A região vive também uma crise humanitária. Há restrição à entrada de ajuda humanitária, e produtos alimentícios básicos, como pão e arroz, estão sob forte pressão inflacionária. A desnutrição infantil alcançou níveis sem precedentes: 11,9% das crianças com menos de cinco anos estão subnutridas.
2. Qual foi a reação internacional?
No sábado, a ONU aprovou uma resolução de um cessar-fogo de 30 dias na região, o qual foi rapidamente descumprido - há relatos de que ao menos 20 pessoas (entre elas sete crianças) tenham sido mortas em Ghouta nesta segunda-feira.
Ante grande pressão internacional, o governo russo - importante aliado de Bashar al-Assad - anunciou a "pausa humanitária" nos bombardeios sobre Ghouta, onde moram centenas de milhares de pessoas. Mesmo assim, a região continuou sob ataque aéreo.
O plano previa que, durante cinco horas por dia, a partir da última terça (27), não haveria ataques, permitindo aos civis que escapem dali por meio de corredores humanitários comandados por organizações não governamentais.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, havia pedido que um cessar-fogo fosse implementado com urgência, advertindo que "Ghouta Oriental não pode esperar. Já passou da hora de interromper esse inferno na Terra".
Os bombardeios, porém, continuaram; só nesta segunda-feira (5) os civis de Ghouta receberam ajuda humanitária, com a chegada de 46 caminhões de alimentos e ajuda médica.
3. Qual o papel de Moscou nessas negociações?
Foi o presidente russo, Vladimir Putin, quem anunciou o corredor humanitário em Ghouta na semana passada - fato que confirma que é a Rússia está tomando a dianteira em relação ao próprio governo sírio.
Moscou é o principal pilar de sustentação do regime Assad e também importante ator militar no enfrentamento contra rebeldes sírios.
Tanto que o governo russo afirmou que pretende continuar a alvejar grupos jihadistas sírios, a despeito da "pausa humanitária" e da pressão por um cessar-fogo.
4. Quais os rumos da guerra?
A guerra civil, que se estende há quase sete anos, se intensificou no último mês, em uma tentativa de Damasco e seus aliados de sufocarem os grupos de oposição. Estima-se que hoje jihadistas controlem apenas 3% do território sírio.
A avaliação de alguns analistas é de que a essência do conflito - o levante contra Assad que evoluiu para uma guerra civil - talvez esteja perto do fim, uma vez que os rebeldes perderam território e apoio externo. E o grupo extremista autodenominado Estado Islâmico, que chegou a controlar parte importante da Síria e do Iraque, também foi derrotado na maioria dos locais, ainda que não totalmente eliminado.
No entanto, além do esgotamento por parte das próprias tropas governamentais, há ainda diferentes frentes de batalha em curso na Síria.
Um exemplo é Afrin, no noroeste do país, que sofreu intensos bombardeios turcos em janeiro - o objetivo da Turquia é conter a minoria curda do local. E, na fronteira sudoeste, Israel tem enfrentado diretamente forças iranianas e sírias, em mais uma evidência de como o conflito sírio evoluiu para uma "guerra por procuração" entre atores internacionais adversários entre si.
5. Qual era a situação na Síria antes da guerra - e o que levou ao conflito?
Antes do início do conflito, em 2011, muitos sírios se queixavam de um alto nível de desemprego, corrupção em larga escala, falta de liberdade política e repressão pelo governo Bashar al-Assad - que havia sucedido seu pai, Hafez, em 2000.
Em março de 2011, adolescentes que haviam pintado mensagens revolucionárias no muro de uma escola na cidade de Deraa, no sul do país, foram presos e torturados pelas forças de segurança.
O fato provocou protestos por mais liberdades no país, inspirados na Primavera Árabe - manifestações populares que naquele momento se estendiam pelos países árabes.
Quando as forças de segurança sírias abriram fogo contra os ativistas - matando vários deles -, as tensões se elevaram e mais gente saiu às ruas. Os manifestantes pediam a saída de Assad.
A resposta do governo foi sufocar as divergências, o que reforçou a determinação dos manifestantes. No fim de julho de 2011, centenas de milhares saíram às ruas em todo o país exigindo a saída de Assad.
6. Como começou a guerra civil?
À medida que os levantes da oposição aumentavam, a resposta violenta do regime se intensificava. Simpatizantes do grupo antigoverno começaram a pegar em armas - primeiro para se defender e depois para expulsar as forças de segurança de suas regiões.
Assad prometeu "esmagar" o que chamou de "terrorismo apoiado por estrangeiros" e restaurar o controle do Estado.
A violência rapidamente aumentou no país: grupos rebeldes se reuniram em centenas de brigadas para combater as forças oficiais e tomar o controle das cidades e vilarejos.
Em 2012, os enfrentamentos chegaram à capital, Damasco, e à segunda cidade do país, Aleppo.
O conflito já havia, então, se transformado em mais que uma batalha entre aqueles que apoiavam Assad e os que se opunham a ele - adquiriu contornos de guerra sectária entre a maioria sunita do país e xiitas alauítas, o braço do Islamismo a que pertence o presidente.
Isso arrastou as potências regionais e internacionais para o conflito, conferindo-lhe outra dimensão.
Em junho de 2013, as Nações Unidas informaram que o saldo de mortos já chegava a 90 mil pessoas.
7. Quem lutou contra quem?
A rebelião armada oposicionista mudou significativamente ao longo do conflito. Uma oposição moderada secular foi superada por radicais e jihadistas - partidários da "guerra santa" islâmica. Entre eles estão o autointitulado Estado Islâmico e a Frente Nusra, afiliada à al-Qaeda.
Os combatentes do EI - cujas táticas brutais chocaram o mundo - criaram uma "guerra dentro da guerra", enfrentando tanto os rebeldes da oposição moderada síria quanto os jihadistas da Frente Nusra. Hoje praticamente subjulgados em termos territoriais, os combatentes do EI continuam, no entanto, a promover ataques mais esporádicos.
Também combatem o Exército curdo, um dos grupos que os Estados Unidos chegaram a apoiar no norte da Síria, com bombardeios aéreos.
Já a Rússia lançou em 2015 uma campanha aérea com o fim de "estabilizar" o governo sírio após uma série de derrotas para a oposição.
A intervenção russa possibilitou vitórias significativas das forças sírias. A maior delas foi a retomada da cidade de Aleppo, um dos principais redutos dos grupos de oposição, em dezembro de 2016.
8. Qual é o envolvimento das potências internacionais?
Na era Obama, os Estados Unidos culpavam Assad pela maior parte das atrocidades cometidas no conflito e exigiam que ele deixasse o poder como precondição para a paz.
O atual governo Trump, por sua vez, dizia que derrubar o presidente sírio não era uma prioridade, mas sim derrotar o Estado Islâmico - e que Assad era um aliado nessa batalha. Após um devastador ataque químico em 2017, porém, esse discurso mudou, e os EUA chegaram a realizar bombardeios em apoio à oposição.
Mas o grande ator na guerra síria é a Rússia, que apoia a permanência de Assad no poder, algo crucial para defender os interesses de Moscou no país.
O Irã, de maioria xiita, também é aliado próximo de Bashar al-Assad. A Síria é o principal ponto de trânsito de armamentos que Teerã envia para o movimento Hezbollah no Líbano - a milícia também enviou milhares de combatentes para apoiar as forças sírias.
Estima-se que os iranianos já tenham desembolsado bilhões de dólares para fortalecer as forças sírias, provendo assessores militares, armas, crédito e petróleo.
Contrapondo-se à influência do Irã, a Arábia Saudita, principal rival de Teerã na região, tem enviado importante ajuda militar para os rebeldes, inclusive para grupos radicais.
Outro aliado dos rebeldes sírios, a Turquia também buscou limitar o apoio dos EUA às forças curdas, que acusam de apoiar rebeldes do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão).
9. Por que a guerra está durando tanto?
Um fator-chave é a intervenção de potências regionais e internacionais.
O apoio militar, financeiro e político externo tanto para o governo quanto para a oposição tem contribuído diretamente para a continuidade e intensificação dos enfrentamentos, e transformado a Síria em campo para uma guerra indireta - ou "guerra por procuração".
A intervenção externa também é responsabilizada por fomentar o sectarismo no que costumava ser um Estado até então secular (imparcial em relação às questões religiosas).
As divisões entre a maioria sunita e a minoria alauita no poder alimentou atrocidades de ambas as partes, não apenas causando a perda de vidas, mas a destruição de comunidades, afastando a esperança de uma solução pacífica.
A escalada de terror causada por grupos jihadistas como o EI - que aproveitou a fragilidade do país para tomar o controle de vastas partes de território no norte e leste - acrescentou outra dimensão ao conflito.
10. Qual é o impacto da guerra?
O Centro Sírio para Pesquisa de Políticas calcula que o conflito já tenha causado a morte de mais de 470 mil pessoas, ainda que não haja cifras totalmente confiáveis a respeito.
Segundo a ONU, mais de 5 milhões de pessoas fugiram do país, em sua maioria mulheres e crianças, e metade da população foi de alguma forma deslocada pela guerra.
O êxodo de refugiados, um dos maiores da história recente, colocou sob pressão os países vizinhos - Líbano, Jordânia e Turquia.
Cerca de 10% deles buscam asilo na Europa, provocando divisões entre os países do bloco europeu sobre como dividir essas responsabilidades.
E as estatísticas terríveis não param por aí.
A ONU disse que são necessários US$ 3,2 bilhões para prover ajuda humanitária a 13,5 milhões de pessoas no país - incluindo 6 milhões de crianças.
Além disso, estimativas do ano passado apontavam que 70% da população não tinha acesso a água potável, uma em cada três pessoas não conseguia suprir as necessidades alimentares básicas, mais de 2 milhões de crianças não iam à escola e uma em cada cinco indivíduos vivia na pobreza.
As partes em conflito têm complicado ainda mais a situação ao recusar o acesso das agências humanitárias aos necessitados.
Fonte: BBC
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