O Supremo Tribunal Federal, quando julga procedente um pedido de extradição, o faz apenas em termos autorizativos. É dizer, não executa a medida extradicional, senão apenas autoriza o presidente da República a proceder na entrega do extraditando, o que poderá ocorrer ou não. A Corte manifesta-se tão somente sobre a legalidade e procedência do pleito extradicional, nada mais.[1] Daí popularmente se dizer que o Supremo, quando diz não, é não, e quando diz sim, é talvez. Uma vez, porém, exercida a faculdade presidencial, a preclusão opera, não havendo que se falar em renovação do pleito pelo Estado estrangeiro, fundamentado no mesmo fato.
É certo que a só existência de tratado de extradição entre dois Estados (como é o caso de Brasil e Itália) indica que deva o presidente da República operacionalizar a entrega do extraditando ao Estado requerente. O tratado, conduto, pode prever exceções ao deferimento da entrega, como faz o Tratado de Extradição firmado entre os dois países em 1989, ao prever que “[a] extradição não será concedida: (…) se a Parte requerida tiver razões ponderáveis para supor que a pessoa reclamada será submetida a atos de perseguição e discriminação por motivo de raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, opinião política, condição social ou pessoal; ou que sua situação possa ser agravada por um dos elementos antes mencionados”, bem assim que “[a] extradição tampouco será concedida: (…) se houver fundado motivo para supor que a pessoa reclamada será submetida a pena ou tratamento que de qualquer forma configure uma violação dos seus direitos fundamentais” (art. 3º, 1, f; art. 5º, b, respectivamente).
Frise-se que foi com base em tais dispositivos (especialmente no art. 3º, 1, f, do Tratado Brasil-Itália) que o então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva – seguindo parecer pouco ortodoxo da Advocacia-Geral da União – decidiu por não extraditar o cidadão italiano Cesare Battisti, cuja extradição havia sido deferida pelo STF em 18 de novembro de 2009.[2]
Era evidente, à época já dizíamos, que os motivos pelos quais o chefe do Poder Executivo baseou-se para não extraditar Battisti não se subsumiam a qualquer dispositivo do Tratado Brasil-Itália, a não ser por ilação forçada, pois nenhuma prova havia de que seria o extraditando “perseguido”, “discriminado” ou que seria submetido a “pena ou tratamento que de qualquer forma configure uma violação dos seus direitos fundamentais”. A decisão palaciana baseou-se em meras notícias jornalísticas veiculadas na Itália, segundo as quais ali haveria comoção política em favor do encarceramento de Battisti. Seja como for, certo é que o então presidente seguiu parecer da Advocacia-Geral da União, que, à evidência, deveria ter sido exarado em termos diametralmente diversos.
Naquela ocasião, o governo italiano, inconformado, propôs Reclamação (Rcl. 11.243) que não foi conhecida pelo STF, além de Petição Avulsa com o fim de anular o ato presidencial. O Supremo, ao final, na Sessão Plenária de 8 de junho de 2011, entendeu, por maioria, que o ato do presidente da República que nega a extradição é um ato de soberania nacional que não pode ser revisto pelo STF.[3]
Agora, pretende o governo italiano novamente reabrir o tema e exigir do atual presidente da República que proceda à extradição de Cesare Battisti. Poderia o presidente, juridicamente, assim proceder? Parece evidente que o instituto da preclusão lógica (que impede a prática de ato contraditório a outro ato anteriormente manifestado) operou na hipótese, pelo que enorme insegurança jurídica viria ao mundo jurídico se autorizada fosse a entrega do extraditando após negativa anterior do Poder Executivo. O ato executivo, em suma, bem ou mal, se esgotou; se consumou totalmente, sem chances jurídicas de ser ressuscitado.
De fato, não é jurídico pensar que pode o Poder Executivo, a seu alvedrio e a seu talante, manipular o instituto da extradição reabrindo discussão preclusa pela lógica, como é exatamente o caso da (nova) tentativa do governo italiano em receber Battisti para a execução da pena em território italiano.
Ademais, à luz dos princípios de direito internacional relativos à matéria, a competência para a extradição é atinente ao cargo, jamais à pessoa do chefe do Poder Executivo. Assim, se há anos o Poder Executivo, certa ou erroneamente, negou a extradição requerida, benefício jurídico integrou o patrimônio do extraditando, que se põe agora à salvo de novo ato executivo atinente a pleito anteriormente já indeferido. Até mesmo se se pensar que pudesse haver reconsideração do ato, parece evidente que não há razão de ser fora do prazo (há anos já passados) do recurso administrativo. Mais ainda: o então extraditando já conquistou direito adquirido a não ser extraditado pelo Executivo brasileiro, uma vez exaurida qualquer possibilidade de revisão do ato executivo anterior.
Eu, particularmente, sempre entendi devesse o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva extraditar Cesare Battisti, notadamente em razão de existir tratado internacional entre os dois Estados a exigir a extradição, bem assim porque não havia, na espécie, qualquer hipótese de afastamento da extradição (contrariamente ao que entendeu, à época, a AGU). Todos sabem que a Itália, um Estado democrático europeu, jamais sujeitaria um extraditando (qualquer extraditando) a tortura ou a qualquer ato que o valha. Foi, em suma, um erro (ou uma vontade?) presidencial, baseado em parecer nada convincente da Advocacia-Geral da União. Contudo, bem ou mal, o ato já está consumado, não podendo o princípio da segurança jurídica falecer diante da vontade de um presidente, qualquer que seja ele. Não há outro caminho, portanto, para o STF. A decisão correta e jurídica será manter Cesare Battisti no Brasil e impedir qualquer ato extradicional que se pretenda levar a efeito.
[1] V. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 10. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora RT, 2016, pp. 811-812; e MAZZUOLI, Valerio Mazzuoli. Algumas questão sobre a extradição no direito brasileiro. Revista dos Tribunais, vol. 906 (abril 2011), pp. 159-176.
[2] O ato presidencial citado, publicado na imprensa oficial (sem qualquer fundamentação, observe-se), foi do seguinte teor: “Processo nº 08000.003071/2007-51. Parecer nº AGU/AG-17/2010, adotado pelo Advogado-Geral da União Substituto, referente ao pedido de Extradição nº 1.085, requerido pela República Italiana. Em face dos fundamentos, aprovo o Parecer e nego a extradição. Em 31 de dezembro de 2010”.
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