No dia 15 de dezembro de 2016, a Corte Europeia de Direitos Humanos emitiu seu julgamento no caso Khlaifia e outros v. Itália, referente à detenção de migrantes irregulares que chegaram à Itália em 2011, durante a Primavera Árabe, e à expulsão desses migrantes para a Tunísia. A Corte decidiu que violações do direito à liberdade e acesso à justiça foram cometidas pela Itália, mas a expulsão para a Tunísia foi regular.
Os autores da ação contra a Itália são os senhores Saber Ben Mohamed Ben Ali Khlaifia, Fakhreddine Ben Brahim Ben Mustapha Tabal e Mohamed Ben Habib Ben Jaber Sfar, todos nacionais da Tunísia. Em setembro de 2011, devido às tensões da Primavera Árabe, eles deixaram a Tunísia em embarcações improvisadas com destino à Itália. Esses barcos foram interceptados pela guarda costeira italiana, que os escoltou para a Ilha de Lampedusa. Lá, os requerentes foram transferidos para um centro de acolhimento e assistência.
Em 20 de setembro de 2011, uma violenta rebelião se iniciou entre os migrantes do centro. As instalações foram incendiadas, de forma que todos os migrantes, incluindo os três requerentes, foram acomodados em um complexo desportivo local. Depois de conseguirem driblar a segurança e chegarem à cidade de Lampedusa, os requerentes e cerca de 1.800 migrantes iniciaram uma manifestação pelas ruas da cidade. Eles foram detidos pela polícia, levados de volta ao centro de acolhimento e depois ao aeroporto mais próximo.
No dia 22 de setembro, os três requerentes foram transportados de avião para Palermo, ao sul da Itália, onde foram acomodados em navios que estavam ancorados no porto dessa cidade. Enquanto Ben Ali Khlaifia foi alocado no navio Vincent, com cerca de 190 outras pessoas, Jaber Sfar e Mustapha Tabal foram acomodados a bordo do Audace, com mais 150 migrantes. Eles permaneceram nos navios por alguns dias, até serem removidos para a Tunísia. Antes da remoção, eles tiveram a identidade e a nacionalidade verificadas pelas autoridades consulares tunisianas.
Ben Ali Khlaifia, Jaber Sfar e Mustapha Tabal iniciaram uma ação contra a Itália alegando diversas violações de seus direitos humanos que foram cometidas no contexto da sua detenção e expulsão para a Tunísia.
Privação de liberdade
Quanto à alegada violação do direito à liberdade, a Corte Europeia de Direitos Humanos concluiu que a detenção de Ben Ali Khlaifia, Jaber Sfar e Mustapha Tabal foi arbitrária. Primeiramente, destacou-se que eles foram detidos pela Itália sem base legal. O Decreto Legislativo no. 286, de 1998, que regula o tratamento e a condição dos estrangeiros na Itália, determina que migrantes devem ser detidos para processamento em centros de identificação e remoção, e não num centro de acolhimento e assistência, como ocorrido no presente caso. Além disso, a Itália argumentou que a detenção dos requerentes teve como fundamento o Acordo Bilateral concluído em 5 de abril de 2011 com a Tunísia. Esse tratado visa controlar o fluxo de migrantes ilegais provenientes da Tunísia para a Itália. A Corte rejeitou esse argumento, porque o texto integral desse acordo nunca veio a público, não sendo, portanto, um instrumento legal acessível aos requerentes.
A Corte também destacou que aos migrantes também foi negado o acesso a habeas corpus, pois eles foram detidos no centro de acolhimento e assistência e nos navios sem uma decisão formal emitida por uma autoridade judicial ou administrativa competente. A detenção foi meramente relatada pelas autoridades policiais, sem que nenhuma decisão tenha sido formalizada.
Diante disso, a Corte Europeia concluiu que o direito à liberdade dos requerentes foi violado, pois a sua detenção foi realizada sem fundamento legal e eles foram privados da garantia do habeas corpus.
Sabendo que a detenção não teve um fundamento jurídico claro e acessível, a Corte também concluiu que a Itália não cumpriu a sua obrigação de informar os requerentes das razões jurídicas que fundamentam a privação de liberdade, os impedindo de efetivamente exercerem o direito de contestar a legalidade da detenção perante uma autoridade competente.
Proibição ao tratamento cruel ou degradante
Os requerentes afirmaram que as suas condições de detenção em Lampedusa e nos navios em Palermo configuraram tratamento cruel ou degradante.
Em sua análise, a Corte destacou que a proibição ao tratamento cruel ou degradante é tão essencial e importante que assume uma natureza absoluta, isto é, não é permitida qualquer derrogação dessa proibição, mesmo nos casos de emergência pública capaz de ameaçar a nação. A Corte também indicou que as condições de detenção devem atingir um nível mínimo de gravidade para efetivamente constituírem tratamento cruel ou degradante. Além disso, a análise deste nível mínimo de gravidade é relativa, dependendo de todas as circunstâncias do caso, tais como a duração da detenção, os seus efeitos físicos e mentais e, em alguns casos, o sexo, a idade e o estado de saúde do detido.
A Corte admitiu que a privação de liberdade possui um elemento inevitável de sofrimento e humilhação, mas apenas isso não é suficiente para configurar tratamento cruel ou degradante. Nesse sentido, o Estado deve assegurar que as pessoas sejam detidas em condições compatíveis com a dignidade humana, que a execução da restrição de liberdade não produza sofrimento numa intensidade que exceda o nível inevitável que é inerente à própria detenção e que a saúde e o bem-estar dos detentos sejam adequadamente garantidos.
Assim, apesar dos Estados terem o direito soberano de controlar a entrada e a permanência de estrangeiros em seu território, este direito deve ser exercido em conformidade com os direitos humanos. Além disso, os Estados devem ter atenção especial à situação de vulnerabilidade dos estrangeiros.
Depois de apresentar esses aspectos gerais, a Corte passou a analisar o argumento da Itália referente à situação excepcional em que esse Estado se encontra – em especial a Ilha de Lampedusa – devido às intensas ondas de migrantes vindos do norte da África, desde 2011. A Corte admitiu que a chegada em massa de migrantes gerou dificuldades organizacionais, logísticas e estruturais para a Itália, tendo em vista a combinação de obrigações a serem cumpridas por este Estado, especialmente quanto ao resgate de navios no mar, o recebimento e acomodação dos migrantes e a proteção daqueles em situações de vulnerabilidade. Esse contexto revela que a Itália teve e está tendo de lidar com muitas dificuldades devido à chegada de um número excepcionalmente elevado de migrantes em seu território, de forma que as autoridades italianas se encontram sobrecarregadas com uma grande variedade de obrigações ligadas à garantia do bem-estar tanto dos migrantes quanto da população local e à manutenção da lei e da ordem.
Apesar desta inegável situação de excepcionalidade, a Corte concluiu que, à luz do caráter absoluto da proibição ao tratamento cruel ou degradante, “um grande afluxo de migrantes não é motivo capaz de eximir um Estado das obrigações que lhe são impostas em decorrência desta proibição”. Nesse sentido, até mesmo o tratamento infligido sem a intenção de humilhar ou degradar a vítima e que decorre, por exemplo, das dificuldades objetivas relativas à intensa chegada de migrantes, pode configurar tratamento cruel ou degradante.
Embora as limitações inerentes à crise dos migrantes não possam, por si só, serem utilizadas para justificar um comportamento contrário à proibição ao tratamento cruel ou degradante, “a Corte concluiu que seria certamente artificial analisar os fatos do caso sem considerar o contexto geral em que esses fatos se inserem. Por conseguinte, na sua apreciação, a Corte também analisará, juntamente com outros elementos, as dificuldades e os inconvenientes que os recorrentes sofreram devido, em grande medida, à situação de extrema dificuldade que as autoridades italianas enfrentaram à época dos fatos relevantes”.
Dito isso, a Corte passou a analisar a situação dos requerentes no centro de acolhimento e assistência em Lampedusa. Quanto a esse ponto, os requerentes alegaram que estiveram expostos a um sério problema de superlotação, higiene inadequada e falta de contato com pessoas externas ao centro, configurando tratamento cruel ou degradante. De fato, em 2009, essas alegações foram confirmadas por uma comissão especial do Senado da Itália, bem como pela Anistia Internacional. Porém, em 2011, as condições do centro já tinham melhorado consideravelmente, de forma que ONGs e entidade internacionais estavam autorizadas a atuar no centro, os salas eram ventiladas, as instalações sanitárias eram adequadas e os internos tinham acesso a tratamento médico constante.
Apesar disso, não se pode negar que o centro de acolhimento e assistência apenas servia para acomodação temporária de migrantes, de forma que não possuía a infraestrutura necessária para acomodá-los por mais do que poucos dias. Porém, a Corte destacou que os requerentes apenas ficaram nesse centro por dois dias, sendo removidos devido ao incêndio seguido da rebelião. Não se pode presumir que as autoridades italianas permaneceram inativas e negligentes, nem se pode exigir da Itália que a transferência dos migrantes fosse organizada e realizada em menos de dois ou três dias. A Corte observou, ainda, que os recorrentes não apresentaram qualquer alegação quanto a maus-tratos deliberados pelas autoridades do centro ou falta de alimento e água em quantidade e qualidade adequadas.
Quanto às condições dos navios Vincent e Audace, a Corte destacou que as alegações dos recorrentes não encontram fundamento em qualquer elemento objetivo, mas apenas no próprio testemunho deles. Depois disso, observou-se que quando um indivíduo é detido em boa saúde, mas não se encontra nesse mesmo estado no momento da soltura, incumbe ao Estado fornecer uma explicação plausível sobre o modo como essas lesões foram causadas. Ademais, quando os fatos relevantes ocorreram enquanto as vítimas estavam sobre total ou parcial controle exclusivo do Estado, deve-se presumir que os danos à saúde dos indivíduos ocorreram durante a detenção. Assim, o ônus da prova fica com o Estado, que deve fornecer uma explicação satisfatória e convincente para esses danos às vítimas, apresentando todas as provas relevantes para fundamentar essa explicação. Se o Estado não cumpre esse ônus, a Corte pode realizar conclusões e presunções desfavoráveis a ele, pois as pessoas sob a custódia do Estado se encontram numa posição de vulnerabilidade e as autoridades têm o dever de protegê-las.
Diante disso, no presente caso, o ônus da prova é da Itália, já que as alegações de maus-tratos se referem à conduta de agentes policiais e de outras autoridades estatais similares e também pelo fato de envolverem fatores corroborantes, como a existência de danos de origem desconhecida e inexplicada. Apesar disso, a Corte concluiu que não há qualquer evidência de tratamento cruel ou degradante contra os requerentes. Isso porque, eles não apresentaram nenhum documento atestando sinais ou efeitos dos alegados maus-tratos ou qualquer testemunho de terceiros que confirmasse a sua versão dos fatos.
Diante do exposto, as condições de alojamento do centro de acolhimento e assistência em Lampedusa e dos navios Vincent e Audace não atingiram o nível mínimo de gravidade exigido para que o tratamento pela Itália seja considerado desumano ou degradante.
Proibição de expulsões coletivas
O Artigo 4º do Protocolo nº 4 da Convenção Europeia de Direitos Humanos proíbe expulsões coletivas de estrangeiros. Diante disso, os requerentes alegaram que eles e os outros migrantes foram expulsos coletivamente, violando esse dispositivo.
Em seu julgamento, a Corte relembrou que a expulsão de vários estrangeiros por decisões similares não constitui uma violação da proibição de expulsões coletivas, desde que a cada um dos estrangeiros tenha sido dada a oportunidade de apresentar argumentos contrários a sua expulsão. Além disso, as autoridades devem considerar esses argumentos e as condições pessoas do estrangeiro ao ponderar sobre a expulsão.
A Corte destacou que os requerentes passaram por dois processos de identificação: um ao chegarem ao centro de acolhimento e assistência de Lampedusa e outro pelas autoridades consulares da Tunísia antes de embarcarem no avião para esse país. Na identificação em Lampedusa, a Itália providenciou diversos profissionais para auxiliar e garantir que o processamento dos migrantes fosse adequado. A identificação foi acompanhada por 99 operadores sociais, três assistentes sociais, três psicólogos e oito intérpretes e mediadores culturais.
A Corte observou que durante o confinamento dos requerentes nos navios e no centro de acolhimento e assistência de Lampedusa, eles efetivamente tiveram a oportunidade de notificar as autoridades das razões pelas quais deveriam permanecer na Itália. De fato, setenta e dois migrantes detidos no manifestaram a sua intenção de requerer asilo, e foram, depois disso, transferidos para outros centros de acolhimento para que esse pedido fosse analisado pela autoridade competente.
A Corte salientou também que a proibição de expulsões coletivas não garante o direito a uma entrevista individual em todas as circunstâncias. Nesse sentido, a expulsão não será considerada irregular se for demonstrado que a cada um dos estrangeiros foi dada a possibilidade de apresentar argumentos contra a sua expulsão e que esses argumentos foram analisados pelas autoridades estatais. Sabendo que os requerentes permaneceram entre nove e doze dias em solo italiano, a Corte concluiu que eles efetivamente tiveram a possibilidade de chamar a atenção das autoridades nacionais para qualquer circunstância susceptível de modificar o seu estatuto, os habilitando a permanecer na Itália. Além disso, a segunda verificação de identidade perante o cônsul da Tunísia foi uma nova oportunidade para que qualquer argumento fosse apresentado.
Assim, a expulsão dos requerentes não pode ser considerada coletiva, pois eles tiveram a oportunidade de apresentar razões para justificar a impossibilidade de seu retorno à Tunísia e o não fizeram.
Direito ao acesso à justiça
Os requerentes também alegaram a violação do seu direito ao acesso à justiça, já que, segundo a lei italiana, o recurso possível contra a ordem de expulsão no presente caso não teria efeito suspensivo. Quanto a esse argumento, a Corte destacou que a Convenção Europeia de Direitos Humanos não impõe uma obrigação absoluta aos Estados partes de garantir efeito suspensivo ao recurso contra uma ordem de expulsão. Esse tratado apenas exige que o estrangeiro sujeito ao procedimento de expulsão tenha a possibilidade de impugnar a decisão em questão perante uma autoridade doméstica independente, imparcial e competente para realizar uma análise satisfatória de todos os pontos levantados pelo indivíduo. No presente caso, o Tribunal de Justiça de Paz de Agrigento, o órgão incumbido de analisar os recursos contra as ordens de expulsão, satisfez essas exigências.
A ausência de efeito suspensivo de um recurso contra uma decisão de expulsão não constitui, por si só, uma violação do direito ao acesso à justiça. Uma violação nesse sentido ocorreria apenas se os requerentes tivessem alegado que há um risco real de sofrerem violações do seu direito à vida e da proibição de tortura e tratamento cruel e degradante se retornassem ao país de origem. Já que nenhuma alegação nesse sentido foi apresentada, a inexistência de efeito suspensivo do recurso não viola o direito ao acesso à justiça.
O julgamento completo pode ser lido, em inglês, aqui.
Fonte: CEDIN
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