Em meio a muita balbúrdia a respeito da relevância (ou não)
do sistema multilateral de comércio hoje representado pela Organização Mundial
do Comércio (OMC), valem a pena algumas reflexões sobre os diferentes desafios
enfrentados para liberalizar o comércio em um mundo cada vez mais
protecionista.
A OMC é, há pouco mais de duas décadas, uma história de
sucesso. São muitas as vitórias contabilizadas pelo sistema, muitos os louros
em diferentes áreas administradas pela Organização, e muitas as vantagens para
os, hoje, 164 Membros.
Para além do extremamente bem-sucedido sistema de solução de
controvérsias construído no âmbito da Organização – com profissionais altamente
qualificados, disputas comerciais sofisticadas e uma inigualável capacidade de
influenciar a criação de uma jurisprudência de alcance internacional –, a OMC
contabiliza ganhos em outras áreas individuais ao longo dos anos. Exemplo
recente disso são o Acordo de Facilitação em Comércio firmado da Conferência
Ministerial de Bali, e a proibição de subsídios à exportação de produtos
agrícolas e o disciplinamento de medidas equivalentes, como créditos oficiais
favorecidos, ajuda alimentar distorcida e uso inadequado de empresas estatais,
alcançados durante a Conferência Ministerial de Nairóbi em dezembro passado. E
esses são os exemplos mais recentes, apenas.
Não há dúvidas sobre os ganhos
sistêmicos para os Membros que aderiram à OMC, e não à toa o número de acessões
não parou de crescer ao longo dos anos. No entanto, parece haver um
entendimento equivocado, ao menos no Brasil, de que em razão de não se conseguir
um consenso dos Membros com relação a totalidade dos temas da Rodada Doha,
então a OMC não funciona. Isso não é verdade.
A Rodada Doha lançada em 2001 reflete um enorme pacote de
ambições que contempla diferentes interesses dos Membros. Deste pacote, vários
avanços foram feitos em diferentes áreas ao longo dos anos – como agricultura,
transparência, tecnologia da informação e facilitação de comércio –, em que
pese ainda haver discordância em muitos outros temas. Desqualificar estas
vitórias (grandes vitórias!) em razão da não conclusão de todos os temas
propostos na Rodada é um enorme engano.
É também um equívoco o entendimento de que se tem que
priorizar acordos bilaterais, regionais, ou os famosos “mega-acordos” em
detrimento das negociações na OMC. Não há necessidade de escolher entre uma
frente e outra, quando se pode fazer tudo paralelamente. Com efeito, já se demonstrou em diversas
oportunidades que decisões tomadas em acordos de menor escala facilitam, em
muito, as decisões a serem tomadas na OMC pelos seus Membros, que já chegam
alinhados em discussões de temas que são tratados no âmbito da Organização.
Contudo, negociar em várias frentes alavanca o poder de barganha dos países
negociadores, de forma que não há desvantagem.
Vale lembrar, ademais, que a OMC é ainda o único foro de
comércio multilateral capaz de emanar regras e decisões horizontais para
praticamente todos os playersdo mundo em comércio internacional. Some-se a isso
ao fato de que a conclusão de “mega-acordos” que, para alguns, estariam
ameaçando a relevância da OMC, não é tão simples quanto parece. Exemplo disso
são as recentes declarações dos candidatos à presidência dos EUA, Hillary
Clinton e Donald Trump, sobre a enormemente proclamada Parceria Transpacífico
(TPP), que corre o risco de não ser ratificada por pressão interna de
diferentes setores da economia norte-americana.
Num mundo cada vez mais protecionista, um dos grandes
desafios da OMC parece ser ajustar as dificuldades da realidade de um cenário
muito menos otimista do que aquele da década de 1990 e começo dos anos 2000 às
expectativas e anseios atuais dos seus Membros. A importância da manutenção do
sistema é inquestionável, mas a fim de mantê-lo e assegurar sua relevância para
os próximos anos, é necessário que os Membros estejam dispostos a uma profunda
reflexão sobre alternativas mais flexíveis e criativas, sobretudo no que diz
respeito às tomadas de decisões que afetem a todos horizontalmente.
Esse texto faz parte da 9ª edição da revista Boletim BMJ.
Fonte: Linkedin Renata Amaral
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