No cenário político global da atualidade, a palavra segurança tem dado o tom a inúmeras decisões governamentais em diferentes países. Ela tornou-se uma “palavra ônibus” por envolver significados distintos mas que é assumida, de maneira geral, por um significado mais ou menos comum que traceja senão uma uniformidade ao menos uma tentativa de harmonização política que repercute na produção legislativa e na adoção de mecanismos de controle de massa, como se verá.
Minimamente podemos identificar quatro dimensões na palavra segurança. A primeira é que ela pode expressar um estado de alma, uma disposição mental em que o sujeito tem seu espírito sereno e tranquilo.
A segunda diz respeito a uma situação objetiva em que o sujeito não se sente e não está sujeito a nenhum perigo em razão das condições econômicas, materiais e políticas que desfruta pessoalmente. Não se trata mais de uma situação interior derivada do estado de espírito mas, ao contrário, de uma situação objetiva de ausência de risco e de perigo.
A terceira é da ordem do público, isto é, caracteriza-se pelo dever dos Estados de garantir a proteção dos direitos fundamentais à liberdade, à propriedade privada e à vida, por exemplo. Então, ela destaca o papel ainda muito centrado na responsabilidade estatal que, como unidade política, deve resguardar a segurança pública, vale dizer, das pessoas e dos bens.
A quarta é aquela que é traduzida por um conjunto de medidas para assegurar o bom funcionamento de uma operação ou de um conjunto de operações conectadas e que, desse modo, o que faz é assegurar a continuidade e o pleno funcionamento de um processo. Trata-se de dispor de um “estoque de segurança” que tem por finalidade principal controlar os “fluxos”[1] e que pode ser identificada hoje em expressões e práticas como “segurança das informações”; “segurança energética”, “segurança da saúde”, etc. Aqui é de biossegurança que se trata.
As três primeiras dimensões não são novas. As obras de filosofia política a partir do Século XVIII demonstram que a segurança já era foco da atenção de inúmeros pensadores. No que diz respeito à segurança como garantia de proteção e direitos fundamentais, a literatura jurídica destes últimos setenta anos pós Segunda Guerra Mundial comprova os esforços para criar marcos normativos protetivos e atribuir aos Estados a primeira responsabilidade em dar-lhes segurança de proteção e garantia de efetivação.
Chama-se a atenção para a quarta dimensão, a da segurança de fluxos. De surgimento mais recente que as anteriores, ela domina na atualidade as políticas estatais e globais. Os parlamentos de diversos países têm sido desafiados a criar leis novas destinadas a esse fim. Influenciados pelo discurso global de controle e repressão ao terrorismo e à macrocriminalidade variada, os novos textos legislativos podem contribuir para reduzir enormemente os parâmetros protetivos da segurança de terceira dimensão relativa aos direitos fundamentais. Inevitavelmente, como inúmeros casos já o demonstram, as justiças dos Estados, bem como os tribunais regionais de proteção aos direitos do homem serão demandados a render decisões com vistas à proteção dos direitos humanos violados.
Em nosso País, em nome dos princípios democráticos garantidos pela Constituição e, sob estímulo do conhecido “episódio Snowden”[2], o Marco Civil da Internet foi aprovado e, como referido em outro texto aqui publicado, trata-se de uma lei inovadora tomada como referência por inúmeros outros países justamente porque afinada aos textos internacionais protetivos dos direitos humanos, cujo conteúdo resultou da abertura à participação popular que, agora, é renovada para a criação do regulamento do Marco Civil.
O mesmo se passa com o projeto de lei de proteção de dados pessoais com relação ao qual também é evidente a preocupação do Estado brasileiro em reconhecer, de um lado, a relevância em combater a macrocriminalidade mas também respeitar os direitos fundamentais.
A análise do direito comparado sempre é bem-vinda para que percebamos a realidade de nosso sistema jurídico no que diz respeito às suas evoluções e involuções. Com efeito, no dia 5 de maio foi aprovado pela Assembleia nacional francesa[3]projeto de lei sobre o sistema de informação/vigilância. Embora tal projeto tenha sido criado em período anterior ao atentado contra o jornal Charlie Hebdo, a aprovação do texto do projeto por uma expressiva maioria de parlamentares de diversos partidos, retrata o significado que a “segurança dos processos e dos fluxos” assumiu para as instituições públicas.
Em poucas palavras, esse projeto de lei estabelece as situações e os contextos que podem justificar ações de controle e vigilância por parte do Estado, em nome da defesa nacional, independência nacional, da integridade do território, da prevenção do terrorismo, dos interesses da política exterior, do atentado à forma republicana e, finalmente, da criminalidade e da delinquência organizadas. No entanto, o que inquieta a sociedade civil é justamente a possibilidade de que em nome da “segurança” e do “combate ao terror”, o que ocorra é a vigilância dos ativistas, dos manifestantes defensores de direitos humanos e da sociedade como um todo.
Nesse sentido, o que chama a atenção no conteúdo do projeto de lei é a possibilidade atribuída aos fornecedores de acesso à internet de “identificar uma ameaça terrorista sobre a base de um tratamento automatizado”, em outras palavras, poderá ocorrer a instalação pelas empresas fornecedoras de acesso de uma “caixa preta” de vigilância do tráfico de informações e comunicações. Embora seja dito que o conteúdo das comunicações restará anônimo, pois serão objeto da vigilância apenas os chamados “metadados” (identificação da origem e destino da mensagem, endereço de IP de um site visitado, duração das conversas ou da conexão), especialistas na matéria dizem que haverá possibilidade de controle total sobre as informações e comunicações dos internautas franceses.
A CNIL – Comissão Nacional de Informática e das Liberdades da França lançou severas críticas ao projeto de lei. Embora seja sabido que esse projeto teve por objetivo claro dar legalidade a várias ações de vigilância e controle que já eram praticadas a despeito de previsões legais, a CNIL chamou a atenção para o fato de que ele representa uma verdadeira mudança de paradigma na medida em que viabiliza a adoção de técnicas de vigilância novas que instituirão graves repercussões sobre a vida privada e sobre os dados pessoais[4].
Caso o projeto venha a ser aprovado pelo Senado francês, essas novas práticas permitirão a obtenção de uma quantidade relevante de dados de pessoas que não têm qualquer relação com as motivações legais que justificam o exercício da vigilância. No bom português: será exercida contra quem “nada tem a ver com isso”, cujas comunicações poderão ser violadas pelo simples fato de alguém estar geograficamente próximo a um suspeito de terrorismo que seja alvo de vigilância pela operação das modernas antenas que imitam – e sofisticam – aquelas concernentes aos aparelhos celulares. Esse dispositivo permitirá a coleta “sistemática e automática”[5] de dados relativos às pessoas indiscriminadamente. O projeto de lei enuncia a criação de um sistema complexo de práticas ocultas de obtenção massiva de dados pessoais de nacionais franceses e também de estrangeiros que permanecerão estocados e sob o exclusivo controle dos serviços oficiais de vigilância.
Essa dimensão da segurança mostra bem que os seres humanos são considerados como indefinidamente “permeáveis”, pois nossas existências são profundamente atravessadas pelos “fluxos” mundiais[6], como por exemplo das informações e da vigilância que, obviamente, não deixam de expressar o forte componente paranóico das sociedades de controle em que vivemos hoje, não distante do desejo de “dominação total”, como remarcou Hannah Arendt.
Pela possibilidade flagrante de violação de direitos fundamentais é que esse projeto poderá ser submetido ao controle prévio de constitucionalidade junto ao Conselho constitucional francês a fim evitar, inclusive, que os cidadãos recorram ora Corte Européia de Direitos Humanos, ora ao Tribunal de Justiça da União Europeia. Assim, as Cortes constitucionais e supremas vêem-se hoje confrontadas a dar respostas a novos e intrincados problemas de constitucionalidade quanto também de convencionalidade. No limite, os problemas jurídicos não são mais limitados às esferas territoriais, pois de par com a globalização dos negócios e também dos crimes, há a mundialização do direito. Os juízes, assim, contribuem significativamente para a elaboração do direito global.
Na hora em que a consulta pública relativa ao projeto de lei de proteção de dados do Brasil ainda se encontra aberta à participação da sociedade, é importante saber o que se passa do lado de cá do Atlântico pois, afinal, nós somos o “auditório universal” de que falou Perelman que será o destinatário desse conjunto de novas leis. Para isso, precisamos continuar a levar os direitos humanos a sério.
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
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