Por: Valério de Oliveira Mazzuoli
O tema que trago hoje à reflexão dos leitores é inédito no
Brasil, tendo surgido entre nós a partir da Emenda Constitucional 45/2004, que
acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição. Contudo, até o presente momento
nenhum jurista pátrio o havia desenvolvido. Sequer um autor brasileiro havia
percebido a amplitude e a importância dessa nova temática, capaz de modificar
todo o sistema de controle no direito pátrio. Versamos ineditamente o assunto
no Capítulo II, Seção II, da nossa Tese de Doutorado da UFRGS (v. MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira. Rumo às novas relações entre o direito internacional dos
direitos humanos e o direito interno: da exclusão à coexistência, da
intransigência ao diálogo das fontes. Tese de Doutorado em Direito. Porto
Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Faculdade de Direito, 2008,
pp. 201-241).
Em resumo, o que ali defendemos é que se a Constituição
possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar
constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também
garantir-lhes os meios que prevê a qualquer norma constitucional ou emenda de
se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional.
Nesse sentido, a nossa tese foi no sentido de ser plenamente possível
utilizar-se das ações do controle concentrado, como a ADIn (para invalidar a
norma infraconstitucional por inconvencionalidade), a ADECON (para garantir à
norma infraconstitucional a compatibilidade vertical com um tratado de direitos
humanos formalmente constitucional), e até mesmo a ADPF (para exigir o
cumprimento de um "preceito fundamental" encontrado em tratado de
direitos humanos formalmente constitucional), não mais fundamentadas apenas no
texto constitucional, senão também nos tratados de direitos humano aprovados
pela sistemática do art. 5º, § 3º da Constituição e em vigor no país. Então,
pode-se dizer que os tratados de direitos humanos internalizados com quorum
qualificado passam a servir de meio de controle concentrado (de
convencionalidade) da produção normativa doméstica, para além de servirem como
paradigma para o controle difuso. Quanto aos tratados de direitos humanos não
internalizados pela dita maioria qualificada, passam eles a ser paradigma
apenas do controle difuso de convencionalidade (pois, no nosso entendimento, os
tratados de direitos humanos não aprovados por tal maioria qualificada são
materialmente constitucionais, diferentemente dos tratados aprovados por aquela
maioria, que têm status material e formalmenteconstitucionais).
Em outras palavras, o que nós ineditamente defendemos (e não
vimos ninguém fazê-lo até o momento) foi o seguinte: quando o texto
constitucional (no art. 102, inc. I, alínea a) diz competir precipuamente ao
Supremo Tribunal Federal a "guarda da Constituição", cabendo-lhe
julgar originariamente as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIn) de lei
ou ato normativo federal ou estadual ou a ação declaratória de
constitucionalidade (ADECON) de lei ou ato normativo federal, está autorizando
que os legitimados próprios para a propositura de tais ações (constantes do
art. 103 da Constituição) ingressem com tais medidas sempre que a Constituição
ou quaisquer normas a ela equivalentes (como,v.g., os tratados de direitos
humanos internalizados com quorum qualificado) estiverem sendo violadas por
normas infraconstitucionais. A partir da Emenda Constitucional 45/04, é
necessário entender que a expressão "guarda da Constituição",
utilizada pelo art. 102, inc. I, alínea a, alberga, além do texto da
Constituição propriamente dito, também as normas constitucionais por
equiparação. Assim, ainda que a Constituição silencie a respeito de um
determinado direito, mas estando este mesmo direito previsto em tratado de
direitos humanos constitucionalizado pelo rito do art. 5º, § 3º, passa a caber,
no Supremo Tribunal Federal, o controle concentrado de constitucionalidade
(v.g., uma ADIn) para compatibilizar a norma infraconstitucional com os
preceitos do tratado constitucionalizado.
Assim, a nossa conclusão é a de que todos os tratados que
formam o corpus juris convencional dos direitos humanos de que um Estado é
parte servem como paradigma ao controle de convencionalidade das normas
infraconstitucionais, com as especificações que se fez acima: a) tratados de
direitos humanos internalizados com quorum qualificado (equivalentes às emendas
constitucionais) são paradigma do controle concentrado (para além, obviamente,
do controle difuso), cabendo, v.g., uma ADIn no STF a fim de invalidar norma
infraconstitucional incompatível com eles; b) tratados de direitos humanos que
têm apenas "status de norma constitucional" (não sendo
"equivalentes às emendas constitucionais", posto que não aprovados
pela maioria qualificada do art. 5º, § 3º) são paradigma apenas do
controledifuso de convencionalidade (Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Op.
cit., p. 236.). Ocorre que os tratados internacionaiscomuns (que versam temas
alheios a direitos humanos) também têm status superior ao das leis internas. Se
bem que não equiparados às normas constitucionais, os instrumentos
convencionais comuns (como sempre defendemos, com base no art. 27 da Convenção
de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969) têm status supralegal no
Brasil, posto não poderem ser revogados por lei interna posterior, como também
estão a demonstrar vários dispositivos da própria legislação brasileira, dentre
eles o art. 98 do Código Tributário Nacional (verbis: "Os tratados e as
convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna,
e serão observados pela que lhes sobrevenha"). Neste último caso, tais
tratados (comuns) também servem de paradigma ao controle das normas
infraconstitucionais, posto estarem situados acima delas, com a única diferença
(em relação aos tratados de direitos humanos) que não servirão de paradigma do
controle de convencionalidade (expressão reservada aos tratados com nível
constitucional), mas do controle de legalidade das normas infraconstitucionais.
Portanto, as justificativas que se costumam dar, sobretudo
no Brasil, para o descumprimento das obrigações assumidas pelo Estado no plano
internacional, são absolutamente ineficazes à luz do Direito Internacional dos
Direitos Humanos e, agora, pela própria ordem constitucional brasileira, que
passa a estar integrada com um novo tipo de controle das normas
infraconstitucionais: o de convencionalidade.
É assim, doravante, que deve ser resolvido o problema das
leis (ainda que compatíveis com a Constituição) que violem tratados de direitos
humanos.
Mas, e quando o conflito for entre a própria Constituição e um tratado de direitos humanos? Neste caso, aplica-se uma outra teoria: a do diálogo das fontes (expressão criada pelo jurista alemão Erik Jayme, no seu Curso da Haia de 1995, trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, e desenvolvida em nossa Tese de Doutorado para aplicação às relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno). Mas isso, como teria dito Kipling, é uma outra história.
Fonte: LFG
Mas, e quando o conflito for entre a própria Constituição e um tratado de direitos humanos? Neste caso, aplica-se uma outra teoria: a do diálogo das fontes (expressão criada pelo jurista alemão Erik Jayme, no seu Curso da Haia de 1995, trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques, e desenvolvida em nossa Tese de Doutorado para aplicação às relações entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno). Mas isso, como teria dito Kipling, é uma outra história.
Fonte: LFG
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