Dados recentes divulgados pelo Banco Mundial sobre o ranking dos negócios no Brasil, no amplo estudo Doing Business 2014[1], reafirmam preocupantes fragilidades do ambiente empresarial doméstico, em particular quanto aos obstáculos concretos para constituição de sociedades empresárias, independentemente do porte, e o ingrato embate de empreendedores com a burocracia administrativa e cartorial que domina o país desde os tempos do Império.
Dentre os países em desenvolvimento de projeção internacional, o Brasil continua a revelar uma das mais desanimadoras estatísticas para pequenas e médias empresas (SMEs), sem considerar os obstáculos iniciais encontrados por investidores estrangeiros na operação e funcionamento de sociedades reguladas pelas leis brasileiras e aqui estabelecidas como subsidiárias de estrangeiras. Internamente, como se sabe, o percurso para estabelecer uma empresa é complexo, passando por juntas comerciais, obtenção de número de CNPJ na Receita Federal, registros de seguridade social e demais inscrições federais, estaduais e municipais. Somente para a cidade de São Paulo, estima-se que sejam necessários 107 dias e 13 procedimentos distintos para alcançar a regularidade de uma sociedade limitada. Antes mesmo da inevitável peregrinação por instâncias administrativas em terras brasileiras, no entanto, investidores estrangeiros são confrontados com a assustadora dinâmica de funcionamento do sistema de legalizações de documentos perante repartições diplomáticas e consulares do Brasil no exterior. Esse é o cenário burlesco que o artigo pretende, de modo mais amplo, explorar.
Na prática da advocacia internacional, desde há tempos tem sido trabalhoso, e quiçá constrangedor, explicar para clientes (independentemente da área de atuação, se em direito de família, contratos ou empresas) o intrigante regime da “consularização” de documentos estrangeiros, requerida para que determinados atos, contratos, certidões e registros possam produzir seus efeitos no Brasil. Isso para não mencionar a conhecida morosidade imposta pelo repertório de assinaturas, carimbos e selos naquelas repartições do Ministério das Relações Exteriores em diversos países. Para boa parte de atos públicos produzidos no exterior, ou mesmo contratos celebrados com firmas reconhecidas por notários, atuam nossos consulados e embaixadas apenas e tão somente para atestar a autenticidade extrínseca desses instrumentos, vale dizer, a identidade e a função de seus signatários. Posteriormente, eles seguem ao Brasil para as traduções juramentadas e tudo o quanto seja necessário para que uma repartição governamental ou mesmo tribunais domésticos reconheçam seus efeitos[2].
O paradoxal significado desse provincianismo burocrático para o Brasil, o “País da Copa e do Futuro”, já tem sido posto à prova em outro estudo do Banco Mundial de 2012[3], que explora o quadro comparativo de uma série de países quanto aos incentivos e obstáculos a investimentos estrangeiros em escala global. E um dos pontos, para o qual o estudo chama a atenção, é justamente o agravamento dos custos e tempo gasto nos processos de regularização e legalização de documentos utilizados em projetos de novos negócios empresariais em países não signatários da Convenção da Haia relativa à supressão da exigência de legalização dos atos públicos estrangeiros, de 5 de outubro de 1961, mundialmente conhecida como a “Convenção da Apostila”[4]. Trata-se de mais um vergonhoso exemplo dado por nosso país, porque persiste como manifesta teimosia e descuidado com questões sensíveis a indivíduos, famílias e empresas em suas interações e mobilidades transnfronteiriças.
Administrada pela Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (CHDIP) uma importante organização internacional para a vida dos indivíduos, famílias e empresas em suas múltiplas relações privadas transnacionais-, a Convenção da Apostila de 1961 já foi adotada por 106 países, dentre os quais se encontram significativos parceiros econômicos do Brasil, como Estados Unidos, China, Argentina, Alemanha, Índia, Rússia, África do Sul, e outros países da América Latina, como México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
A Convenção foi idealizada como instrumento destinado a racionalizar e simplificar as etapas e meios de utilização de documentos estrangeiros entre Estados contratantes, por meio da supressão das legalizações em repartições diplomáticas e consulares. Para tanto, ela prevê a etapa única de emissão de um certificado padrão que comprova, atesta, a autenticidade dos sinais públicos, permitindo o reconhecimento, em determinado Estado contratante, do documento produzido no estrangeiro, na íntegra de suas assinaturas, selos ou carimbos. Esse certificado, a “apostila”, é emitido pela autoridade central indicada pelos Estado contratantes. Observa-se que a apostila não confirma o conteúdo ou teor do documento, mas antes sua existência formal enquanto tal e a autenticidade dos sinais ali apostos. De acordo com o Artigo 5º da Convenção, a “apostila atestará a veracidade da assinatura, a qualidade em que agiu o signatário do ato e, sendo caso disso, a autenticidade do selo ou do carimbo que constam do ato”. Ela não objetiva confirmar, portanto, o conteúdo do ato ou documento sob certificação, mas tão somente seus aspectos formais.
Desde a entrada em vigor da Convenção da Apostila, em 24 de janeiro de 1965, a Conferência da Haia mantém relação atualizada de todas as autoridades centrais dos Estados contratantes, otimizando os mecanismos pelos quais órgãos governamentais e tribunais, por exemplo, verificam se dado documento emitido no estrangeiro cumpre a única exigência necessária para que ele possa produzir efeitos no Estado destinatário[5]. A condição é que este também seja parte na Convenção e a tenha ratificado ou a ela aderido. As apostilas são, assim, aplicadas em formulários oficiais, atos públicos registrais, atos societários, certidões de nascimento, casamento, óbito, documentos emitidos por tribunais, diplomas escolares e universitários, documentos particulares com firma reconhecida por notário, como contratos, e até formulários de registro de marcas e patentes. Após mais de cinco décadas, a Convenção da Apostila de 1961 não apenas alcançou êxito quanto ao número de adesões dos Estados da Conferência da Haia e outros não-membros, mas também consolidou um amplo “regime global de circulação e reconhecimento de documentos estrangeiros”. Ele é indispensável para facilitar que indivíduos conduzam seus assuntos pessoais, familiares e profissionais em diferentes jurisdições, e as empresas possam realizar seus negócios mais essenciais, especialmente enquanto mantenham atividades econômicas e operacionais em outros países.
Como visto, o Brasil não integra o sistema da Apostila, tal como administrado pela Conferência da Haia no plano multilateral. Nosso país permanece firme com suas antigas práticas de legalizações diplomáticas e consulares, desnecessárias e morosas, as quais a Convenção de 1961 buscou extirpar da vida internacional desde sua adoção. Há alguns anos parece haver empenho de nossa diplomacia em aproximar as atividades dessa natureza, então costumeira nas relações exteriores, à realidade inevitável da Apostila como é patrocinada pela Conferencia da Haia. Contudo, ainda hoje restam vivos os serviços oferecidos pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) por suas embaixadas e repartições consulares no estrangeiro, nas rotineiras práticas de autenticações e legalizações. Da mesma forma, são reduzidos os casos de simplificação ou dispensa de legalizações de atos públicos (incluídos documentos particulares com firma reconhecida por notário), decorrentes de tratados bilaterais de cooperação celebrados pelo Brasil com terceiros Estados, tais como Argentina[6], França[7] e Itália[8]. Enfim, o quadro não é animador para quem faz negócios, tem família ou trabalha no Brasil enquanto necessite do reconhecimento e execução de certos atos públicos e documentos originados do estrangeiro.
Seguindo essa racionalidade, para que sejam reconhecidos e produzam efeitos no território nacional, documentos emitidos em outros Estados devem ser legalizados na embaixada ou consulado brasileiro acreditado no Estado de origem. E esse procedimento tem custos envolvidos – financeiros e de tempo -, sobretudo pela cobrança de emolumentos pelos serviços prestados e pelo fato de a legalização não se processar de imediato nos guichês ou balcões dessas repartições. A depender do volume de documentos recebidos por consulados, alguns dias serão necessários para que o documento seja restituído à parte interessada com o selo de legalização da autoridade de representação do MRE no exterior. Após essa etapa, caso tenha sido redigido em português, sendo emitido, portanto, em língua estrangeira, o documento deverá ser traduzido por tradutor juramentado no Brasil. No todo, trata-se de rotina que implica nova demanda de tempo e de dinheiro. O percurso contrário também exige a mesma dedicação do cidadão brasileiro ou estrangeiro quanto aos documentos produzidos no Brasil. Para que sejam reconhecidos em outros países, devem passar pela mesma cadeia de legalizações e traduções juramentadas, sendo processados pelos escritórios regionais ou Setor de Legalizações e Rede Consular Estrangeira do MRE em Brasília, o qual tem competência para legalizar documentos emitidos em todo o território nacional[9].
Por que, então, é oportuno e necessário que o Brasil reveja sua conduta em relação à adesão da Convenção da Haia sobre a Apostila de 1961? É claro que não se pretende, aqui, contestar a legitimidade das funções notariais e de registro civil dos consulados, expressamente previstas na Convenção de Viena sobre Relações Consulares de 1963, para atos privados, tais como registros de nascimento, casamento e óbito no estrangeiro. O que não mais se sustenta, entretanto, é a prática, a forma de lidar com atribuições que escapam da própria dinâmica da eficiência e razoabilidade, princípios da Administração Pública brasileira, também aplicáveis à atuação do Ministério das Relações Exteriores em seus processos internos, atingindo imediatamente nossas embaixadas e consulados. Também, ao menos do ponto de vista da atual formatação da redes de cooperação jurídica internacional (administrativas e jurisdicionais), em franca expansão no globo, não faria sentido o Brasil deixar de participar de um sistema que simplifica o reconhecimento de atos públicos estrangeiros, como é especificamente aquele criado pela Convenção da Apostila de 1961. Como bem observado recentemente por Nadia de Araujo, Lidia Spitz e Carolina Noronha[10], o sistema da Apostila é totalmente compatível com a estrutura da Administração Pública brasileira, considerando que boa parte de documentos poderiam ser apostilados por tabelionatos de notas, facilitando o acesso por parte dos cidadãos e empresas.
Respondendo ao argumento inicial do artigo, a própria adesão do Brasil à Convenção da Apostila teria efeito positivo e conducente com a imagem que o país pretende imprimir no cenário dos negócios e crescente tendência de internacionalização de empresas brasileiras, como a que tem sido constatada nos últimos anos. Esse evento, relevante para a maior inserção nos foros multilaterais em temas de direito internacional privado e direito do comércio internacional, poderia gradativamente reverter o balanço negativo da análise feita pelo Banco Mundial quanto aos obstáculos erigidos em ambientes de novos empreendimentos no país. Igualmente, além de prestigiar a Conferência da Haia, adotando a Convenção, o Brasil daria passo adiante na redução dos custos e da lentidão dos processos vigentes de legalização de documentos estrangeiros. A conduta, sim, eliminaria, em boa parte, a própria insegurança a que são diariamente lançados indivíduos e empresas, em seus assuntos muito cotidianos, como o desejo de preservar a estabilidade e continuidade de certas situações e relações jurídicas constituídas no estrangeiro em um outro país, diferente daquele de origem. E, pela essência do tema aqui discutido, caberia ao Estado brasileiro admitir, sabiamente, que a Convenção da Apostila de 1961 tem sido a solução mais adequada para ampliação da mobilidade e livre circulação de documentos estrangeiros em escala global, suprimindo barreiras que prejudicam, injustificadamente, direitos de indivíduos e pessoas jurídicas, particularmente nos Estados destinatários.
[1] http://www.doingbusiness.org/data/exploreeconomies/brazil/. Acesso em 3 de abril de 2014.
[2] A exemplo do que ocorre com a homologação de sentenças estrangeiras, de competência do Superior Tribunal de Justiça, considerando que a autenticação em repartição consular é requisito estabelecido pela Resolução 9 do STJ
[3] Investing Across Borders 2012. Disponível em: http://iab.worldbank.org/Data/Explore%20Economies/Brazil#/
Investing-across-sectors.
[4] Texto integral da Convenção em Português pode ser acessado em: http://www.hcch.net/upload/text12_pt.pdf
[5] A lista completa encontra-se na seção dedicada à Apostila, na CHDIP:
[6] Acordo, por troca de Notas, sobre Simplificação de Legalizações em Documentos Públicos, de 16/10/2003, em vigor desde em vigor desde 15 de abril de 2004.
[7] Art. 23 do Acordo de Cooperação em Matéria Civil entre o Governo da República Federativa e o Governo da República Francesa, de 28 de maio 1996 (Decreto nº 3.598, de 12/09/2000).
[8] Art.12 do Tratado relativo à Cooperação Judiciária e ao Reconhecimento e Execução de Sentenças em Matéria Civil”, concluído em 17/10/1989 (Decreto nº 1.476, de 02/05/1995).
[9] Cf., por exemplo, a Portaria do Ministério das Relações Exteriores nº 656 de 29 de novembro de 2013 que regula a atividade de legalização de atos notariais e documentos brasileiros, destinados a produzir efeitos no exterior.
[10] “O processo de legalização de documentos”, publicado no Valor Econômico em 6 de fevereiro de 2014.
*Fabrício Bertini Pasquot Polido é professor adjunto de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado e consultor.
Fonte: Conjur
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