Quando Barack Hussein Obama foi eleito presidente dos
Estados Unidos da América, seus críticos acentuavam sua posição política
liberal como um dos grandes problemas de sua futura administração, que se
comprometeria com causas antipáticas ao modelo tradicional de sociedade e de
mercado no país, ao exemplo do apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo,
o afrouxamento da política imigratória, a implantação de um sistema público de
saúde e o maior intervencionismo econômico do Estado. No Brasil, um liberal é
um defensor da abertura dos mercados, da redução da carga tributária, da mínima
intervenção “econômica” e “na economia” do Estado, da livre iniciativa e da privatização
das empresas estatais. Por outro lado, um conservador, no Reino Unido, ao menos
em sua vertente thatcherista[1], poderia muito bem ser definido como um liberal
segundo os padrões brasileiros ou, para não se limitar tanto o rótulo, de
acordo com as ideias dos seguidores da Escola Austríaca, com sua fulgurante
constelação de economistas do porte de von Hayek[2] e von Mises.[3]
Essa dificuldade de caracterização de pessoas, grupos ou
mesmo um código como liberal ou conservador torna-se ainda mais sensível quando
também se põe em evidência a clivagem esquerda-direita. O Partido Democrata,
nos Estados Unidos da América, e o Partido Trabalhista, no Reino Unido da
Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, seriam representativos de um pensamento de
esquerda. Daí se referir, especialmente na América do Norte, aos democratas
como left-liberals (liberais de esquerda), o que torna ainda mais confusa essa
classificação. Nos países do Leste Europeu, em muitas análises políticas ou
jornalísticas sobre o equilíbrio de forças entre os antigos partidos comunistas
e seus opositores históricos (antigos monarquistas, simpatizantes do modelo
capitalista ocidental ou dissidentes ligados aos direitos humanos ou ao
meio-ambiente), costuma-se dizer que os comunistas (ex-comunistas,
neocomunistas ou socialistas) seriam os conservadores.
No final do século XX e início do século XXI, duas novas
questões perturbaram profundamente a clássica divisão entre conservadores e
liberais. A primeira está na explosão do movimento ambientalista. Os defensores
do meio-ambiente são chamados de ecologistas, ambientalistas
e...conservacionistas. Essa perspectiva evidenciou-se em um estudo interno da
União Democrática-Cristã (cuja sigla em alemão é CDU[4], o partido conservador
da Alemanha, fundado por Konrad Adenauer e que une católicos e protestantes). Nesse
relatório, identificou-se que os ambientalistas seriam o eleitorado mais
“conservador” a longo prazo. Não haveria nada mais conservador do que um membro
do Partido Verde e, nesse sentido, haveria uma convergência natural dos
eleitores de tendência religiosa (como são os do CDU) e os verdes. Não deixa de
ser irônico que, no Brasil, essa profecia haja sido realizada na pessoa da
ex-senadora Marina Silva, ela mesma uma legítima defensora das causas
ambientais e uma cristã protestante ligada aos novos movimentos evangélicos.
A segunda questão é a relativa aos costumes, cuja sede
material estava e está ainda hoje na família e seu papel histórico. O
conservadorismo em costumes foi, até pouco tempo, uma nota distintiva de
partidos como o Republicano, o Conservador, a CDU, o Partido Popular (Espanha)
ou o Partido Social Democrata (Portugal). A defesa da família dita tradicional
afastou essas agremiações (e seus eleitores) de temas como o casamento (ou as
uniões) de pessoas do mesmo sexo, o aborto, as uniões simultâneas e o controle
de natalidade. Hoje, no entanto, essa monolítica orientação quanto aos costumes
sociais está repleta de fissuras. Abstraindo o aborto e o controle de
natalidade e ficando-se apenas nas uniões não heterossexuais (aí compreendidos
outros arranjos), salvo evidentes exceções, o Partido Conservador, a despeito
de forte resistência interna, abandonou suas restrições ao tema. No Partido
Republicano, existem muitos dissidentes, cada vez mais fortes, diga-se, à
vedação jurídica às famílias constituídas fora dos esquemas clássicos.
Nos países de tradição socialista, durante todo o século XX,
prevaleceu a chamada “moral leninista”. A despeito da valorização da mulher e
da igualdade na assunção de atividades econômicas e profissionais, os regimes
comunistas foram tradicionalmente “conservadores” em matéria de costumes. Os
homossexuais eram tidos como degenerados e havia previsões para sua reeducação
ou confinamento. Cuba, um dos últimos estados comunistas no mundo, só
recentemente começou a suprimir essa política discriminatória.
É bem provável que a perda de referencial simbólico,
ideológico e também jurídico das expressões “liberal” e “conservador” haja sido
causada pela ruptura histórica representada pelo fim da experiência do
“socialismo real” na Rússia e na Europa do Leste. É evidente que não se podem
simplificar as coisas e decretar a morte do marxismo, que permanece vigoroso e
com renovado interesse por filósofos, juristas e sociólogos em todo o mundo.
Mas, a experiência iniciada em 1917, com Revolução Russa, e extinta em 1989,
com a queda do Muro de Berlim, permite hoje sua apreciação com o necessário
distanciamento histórico. E, por essa razão, é possível afirmar que a mais
importante categoria sociológica do século XX, o trabalho, perdeu sua capacidade
de explicar isoladamente os fenômenos sociais.
A categoria “trabalho”, que foi a base das duas mais
importantes tradições sociológicas do último século, lideradas por Karl Marx e
Max Weber, era fundamental para dividir e ordenar as classes sociais, os
costumes, a estética, a moda, as expressões lúdicas do povo ou a organização
dos partidos políticos. Hoje, parece haver “tribos” (no sentido equívoco e
vulgar do termo) e não mais “classes”. O bilionário Bill Gates não usa gravata
e foge do estereótipo do capitalista tradicional, embora ele seja tão ou mais
concentrador de renda e violentamente competitivo (com tudo o que isso
significa) quanto seus precursores John D. Rockfeller, J. P. Morgan ou
Cornelius Vanderbilt. Esses últimos eram conhecidos monopolistas nos setores do
aço, petróleo e financeiro, com práticas comerciais tão peculiares que passaram
à história como os “barões gatunos”. Diferentemente de Gates ou de Steve Jobs,
eles prezavam o modo de vestir clássico e um estilo de vida religioso. Tanto
para os barões do século XIX, quanto para os barões contemporâneos, porém, a
vida espartana e a agressividade negocial permanecem idênticas.
O estilo de vida desses novos “barões”, que hoje faz sucesso
em diversos países, como é o caso do Brasil, fez com que eles fossem hoje
reconhecidos pela expressão “bobos”, ou seja, bourgeois bohemian, em português,
“burgueses boêmios”, que foi adaptada por David Brooks, em um livro de 2000,
publicado por Simon & Schuster, com o título muito sugestivo de “Bobos in
paradise: The new upper class and how they got there” (Burgueses Boêmios no
paraíso: a nova classe alta e como eles chegaram lá”). Diz-se adaptada porque
“burguês boêmio” (bourgeoise bohéme) foi uma criação do escritor francês Guy de
Maupassant, em seu romance de 1885, intitulado Bel-Ami.
Esses burgueses boêmios, no entendimento de Brooks, seriam o
fruto da contracultura dos anos 1960, que romperam com o formalismo (jurídico,
filosófico, cultural e estético) e com os costumes sociais baseados na religião,
na família legítima (sobre esse ponto ler a coluna Limites da intervenção
judicial na separação de bens) e moralidade dita burguesa. São capitalistas sem
colarinhos brancos ou gravatas, que não temem as experiências hedonísticas
(negadas pelo ascetismo judaico-cristão) e que defendem a extinção de
hierarquias e de distinções nas empresas (“pode chamar-me de Steve e não de Mr.
Jobs” ). Eles não mais apoiam os partidos conservadores e, sim, os liberais. Em
seus negócios, eles enfatizam práticas politicamente corretas, políticas
afirmativas e assumem-se como defensores da ecologia.
Um poderoso capitalista que se deixa chamar pelo nome e que
considera seu empregado como um “associado” ou “colaborador” e, ainda por cima,
doa dinheiro para causas ecológicas e pode ser encontrado na padaria da esquina
é algo totalmente subversivo para as clivagens clássicas de liberal e
conservador. No Direito, esse fenômeno também se nota, especialmente nas
profissões jurídicas. Veja-se um hipotético exemplo de uma firma que ganha
polpudos honorários de empresas poluidoras ou que devastam o meio ambiente, mas
que defende pro bono causas humanitárias, politicamente corretas ou em favor de
minorias.
Há, em tudo isso, um processo de deturpação do sentido das
palavras, daí a imensa dificuldade em se utilizar essas expressões. E, o que é
mais grave, uma espécie de acomodação dos conflitos, fazendo com que as causas
reais da desigualdade social, da concentração de renda ou transformação de
cidadãos em consumidores sejam obnubiladas por um discurso politicamente
correto. E, até mesmo essa retórica do “bem absoluto”, que mais se parece com
uma religião laica, é comprometida por sua função paralisante. É difícil atacar
quem defende o pandinha em extinção ou quem afeta um comportamento igualitário
em relação a seus empregados, mas que os remunera tão mal quanto a política de
custos mínimos na empresa o permita. E, de resto, essa política de (aparente)
defesa do meio ambiente e de causas coletivas é uma bela (e gratuita)
propaganda da empresa, sob o selo irreprochável da “responsabilidade social”.
Nesse aspecto, o descolamento entre a defesa de costumes
tradicionais, em termos de moral e família, e a preservação do modo de produção
capitalista conferiu aos novos “bobos” uma esfera de imunidade.
Essa contradição essencial entre a manutenção do modelo
econômico e a adoção de práticas morais ditas avançadas está no centro do
questionamento hoje formulável sobre o que é ser um liberal ou o que é um
Código liberal?
Nas últimas duas colunas (clique aqui e aqui para ler),
tem-se examinado o papel do Direito e do Código Civil alemão na formação do
Direito Privado brasileiro. A conclusão dessa série visa abrir uma nova
perspectiva sobre o aparente consenso em torno do “liberalismo” do Código de
1916 e do Código alemão. Por uma questão metodológica, fez-se necessário
interromper a sequência das colunas para oferecer ao leitor um exame prévio (e
indispensável) do conceito de liberalismo e de suas múltiplas nuanças em nosso
tempo.
A complexidade da clivagem liberal-conservador não pode
servir, contudo, para abandonar essas expressões por completo. Em verdade,
passa-se a exigir uma elaboração mais refinada desses termos e a impedir que se
proclame, de modo repetitivo e muita vez acrítico, que o Código de 1916 foi
liberal, sem que se explique essa qualificação. Em suma, é preciso ser
conservador na qualificação de algo como liberal.
[1] Relativo à administração da primeira-ministra britânica
Margareth Hilda Thatcher (1925-2013), nobilitada como Baronesa Thatcher, nos
anos de 1979-1990, marcada pela privatização de empresas estatais, instituição
de um novo modelo regulatório de serviços públicos e pelo estímulo à livre
iniciativa
[2] Friedrich August Edler [nobre] von Hayek (1899-1992),
economista e filósofo, nascido em Viena, no Império Austro-Húngaro, prêmio
Nobel de Economia (1974), é um dos líderes da Escola Austríaca e tem
contribuições importantes na Economia, no Direito e na Psicologia. Ele defendeu
a livre iniciativa, a liberdade individual e é geralmente apontado como o
antípoda de John Maynard LordKeynes, este último defensor da intervenção
econômica do e no Estado.
[3] Ludwig Heinrich Edler [nobre] von Mises (1881-1973),
economista e filósofo, nascido na Galícia, então parte do Império
Austro-Húngaro, de origem judaica, expoente da Escola Austríaca, defensor de
princípios como a livre iniciativa e a liberdade individual. Aos interessados
em conhecer seu trabalho, sugere-se a consulta ao sítio eletrônico:
http://www.mises.org.br/.
[4] Christlich Demokratische Union Deutschlands.
Texto de Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, professor
doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na
Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht (Hamburgo).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 10 de julho de 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário